sublinhar

domingo, dezembro 14, 2003

Memórias de papel (4)

Luzes multicolores e o lamento que ecoa ao longe ferindo o silêncio da noite. Ele está parado, sozinho, sentado num banco de jardim. Observa. Ela está de pé no passeio, junto à rua, e finge que não o vê. Ele continua parado, aparece um sorriso frágil nos seus lábios mas logo se parte. Nada consegue dizer. Ela aproxima-se lentamente, como que a disfarçar, inutilmente. Sorri para ele quando está mais perto, mas também ela nada diz. Senta-se. Ela sente curiosidade, ele senta-se ali todas as noites. Ela não diz nada, timidamente. Talvez um ligeiro medo se interponha entre os dois. Talvez não haja nada para dizer. Ela é prostituta. Ele, funcionário público, finanças. Ama-a. Um barulho forte faz com que ela se levante. Pensa em fugir mas sente-se segura ali. Ele continua imóvel, veste um fato de uma marca conhecida, sente-se seguro de si como quase nunca acontece. Tira do bolso um maço de cigarros e oferece-lhe um. Ela aceita com um sorriso e senta-se de novo. Olham-se por um breve instante, com carinho. Nem uma palavra sai dos sues lábios. Ela treme, talvez de frio. Veste o seu uniforme curto e de cores berrantes. Aproxima-se timidamente dele. Tem medo de todas as palavras que possa dizer. Há algum tempo considerava-o um tarado mas aprendeu a confiar. Gosta do seu estilo seguro e meticuloso. Lembra durante o sono os seus gestos pausados e levemente femininos. Ele gosta assim. Aprendeu a usar o corpo como um felino. Fuma de vagar e treme um pouco, pela primeira vez. Mil vezes a imaginou assim tão perto. Imagens mil vezes repetidas nas vigílias em gabinetes escuros. Agora, tem que fazer um leve esforço para se abstrair do forte perfume que ela usa. Sente repulsa por esse cheiro que lhe recorda as vezes que a viu partir com clientes. Mas voltou sempre. Volta sempre. Um carro aproxima-se devagar e para diante deles quebrando o encanto. A janela abre-se. Quando ela se prepara para partir uma lágrima escorrega pela sua face. Quando dá o primeiro passo, ele diz: - Espera. Foi apenas um murmúrio mas foi suficiente.

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