sublinhar

terça-feira, janeiro 18, 2005

A palavra, vida inteira, mata. *

é triste o que acontece a cada palavra mal ela deixa de ser o desejo de a dizer e se consubstancia numa presença física…olha-nos…fere-nos…gira à nossa volta…e viaja até onde não pensávamos ser possível ela viajar. já tentaram prender uma palavra naquele momento crucial em que ela depois de formada nos escapa pela boca, ou pelos dedos no papel? ou então, já sufocaram as palavras no momento antes desse, quando elas ameaçam formar-se, dentro de nós? de nada serve correr atrás delas…tentar conter o que com elas vai.
as palavras guardam o segredo da erosão…da nossa erosão. faz bem o mundo, em girar entre imagens, gestos, corpos, sabores. faz bem o mundo todo, em voltear por sobre o cheiro a carne assada no fogão. nada disso corrompe tanto esta massa de que somos feitos como as palavras. essa é verdadeira erosão. posso bater com a minha mão na madeira…vezes sem fim…com urgência…chamando por alguém, que virá, certamente. nada disso fará com que a minha mão se modifique, os seus ângulos rigorosos manter-se-ão. mas as palavras…transportam demasiado de nós a lugares onde nunca existem.
talvez isto seja incompreensível…eu, por exemplo, penso em dois corpos nus, deitados numa cama, suando no calor do verão, fodendo com ódio (para quem não sabe isto às vezes acontece)…isso é certamente, uma coisa capaz de se gravar na memória física do que somos…mas, em comparação, as palavras…todas elas…incluindo as nunca pensadas…ameaçam contra nós…contra o sono…a vigília…a serenidade…a memória…o corpo…como se fossem mais que uma presença…como se fossem, sempre, em cada palavra, todas as palavras.

* Manuel António Pina

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