sublinhar

sábado, abril 03, 2004

34. [Diário...]

- O que sentes agora?
- Ódio.
- E o que odeias?
- As horas, os minutos, o espaço físico… viver encarcerado neste corpo, nesta espécie de alma…odeia as palavras. Principalmente odeio esta palavra.
- Diz-me o que pensas enquanto dizes tudo isso?
- Penso num corpo… na sua sombra… numa ideia de paz e de euforia…penso em estar aqui, nesta exacta posição do globo…não sei quantos de latitude e não sei quantos de longitude….odeio-me, já te disse?
- Sim, e esperas que eu acredite?
- Espero que vejas o no meu corpo as cicatrizes dessas feridas, espero que procures até encontrares os meus medos…espero que esperes a minha morte, que me deixes naufragado no silêncio…espero que não fales… nunca, nunca mais.
- E porque desejas esse desejo?
- Porque todos os outros desejos me condenam a uma margem azul de infinito…a um copo transbordante de sumo de laranja…a noites de insónia em que fumo, fumo sem parar.
- Insónia?
- Sim, noites em que durmo afogado nesse esquecimento que é a memória do teu corpo, em que desespero procurando vestígios inexistentes…em que a esperança adormece comigo e acorda em outro lugar qualquer.
- E tu acordas onde?
- Acordo em mim. Levanto-me e percorro os dias em gestos desesperados, em actos falhados de esquecimento...imagino um futuro, e depois sinto-me a morrer.
- Como é isso de te sentires a morrer?
- Imagina que me afogo num turbilhão de sentidos…e me esqueço por momentos de tudo…mesmo tudo…e que no momento do êxtase recordo que estou morto. Percebes?
- Não.
- Imagina que imagino isto tudo e que só outra coisa diferente desejo….imagina que esse desejo é apenas o meu desejo…imagina que não existo…acredita, estou todo aqui.
- Nestas palavras que dizes?
- Não, precisamente nas palavras que rasgo no meu corpo…nas palavras que aguardam no silêncio dos dias…nas palavras que são o meu corpo.
- E de que são feitas essas palavras?
- Do medo, do antigo medo que me cerca, das cicatrizes que duram no meu corpo, de um futuro marcado em sangue naquilo que digo…e no que escondo.
- Podes explicar melhor?
- Posso, mas não quero. Explicar melhor seria espetar uma faca no meu coração e esperar que lambesses o sangue da minha morte….dizer-te: mata-me. Aqui, agora, já: Mata-me
- Esperas sinceramente que te mate?
- Espero que continues a pedir apenas o impossível…talvez ame isso em ti…talvez odeie. Talvez me odeie a mim.
- Isto são apenas palavras.
- Eu sei, que fingimento ocultam estas palavras, perguntas tu. E eu não respondo, não te respondo. Não agora, em que palavras são tudo o que tenho para te dar.

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