sublinhar

domingo, abril 04, 2004

Leituras:

Coimbra, 4 de Outubro de1988 – Quer um super-homem. E a vida só nos deixa ser o que já somos.

Coimbra, 21 de Janeiro de 1989 – Está sempre à espera de uma catástrofe. E a catástrofe há-de acabar por vir, assim persistentemente agoirada. O mal é como os cães, que quando a gente os teme mordem mesmo.

Chaves, 8 de Setembro de 1990 – Os gestos que não fazemos à espera que os outros os façam por nós. E assim perdemos a vida, que é uma expressão permanente que não pode ser adiada, nem diferida. Nenhuma prova de comunhão devemos esperar receber que não formos capazes de primeiro ousar.

Coimbra, 2 de Novembro de 1993 – É sempre o mesmo nó cego humano apertado por mil acanhamentos e pudores absurdos, e a mesma incapacidade humana de o desatar a tempo e a horas. Desde o início, há muitos anos já, que as nossas relações foram amigáveis mas esquivas, reticentes, distanciadas, embora a tratasse das mazelas frequentes e amparasse moralmente muitas vezes. Mas hoje, sem eu contar, inopinadamente, em voz velada, confessou-me que tem vivido nos últimos tempos obsessivamente acompanhada dos meus versos. E citou alguns, a começar por estes:

E o gesto cordial que se não fez,
Nem faz,
E fica por detrás
Da timidez.

Dispunha-me então a vencer também a inibição que me distanciava dela, e dizer-lhe que, sem nunca o dar a entender, a considerava intimamente uma das poucas fiéis depositárias futuras da minha memória de poeta. Mas entrou alguém, e a conversa mudou de rumo. E perdemos para sempre a feliz oportunidade de confiada e abertamente, encostar a alam um ao outro.
Miguel Torga - Diário

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