sublinhar

terça-feira, setembro 21, 2004

Escrita hermética

Imaginem. Imaginem um homem sentado numa cadeira do escritório, sozinho, trabalhando frente ao computador. De repente, num momento motivado por uma certa incidência de luz na mesa de vidro fosco onde escreve, ele levanta a cabeça e olha pela janela o prédio em frente. A esta hora da manhã, ele sabe, do outro lado da rua o escritório da imobiliária vizinha têm as portadas das janelas fechadas porque a luz solar bate lá de frente. Tal como o seu escritório, pensa o homem, eles também não têm estores. Mas, e isso é que é importante, quando o homem levantou a cabeça para olhar lá para fora, uma pessoa passava na rua. Bom, passavam muitas pessoas. Esta, no entanto, andava mais devagar e chorava, depois desapareceu na curva da rua. Este é só um momento, uma personagem sem muito sentido que entra pelo lado direito do palco, sai pelo lado esquerdo, bem lá no fundo, sem dizer nada. Bom, podem tentar acreditar que era uma personagem simbólica. Mas em segredo vos posso dizer que as pessoas têm sua própria vida e tudo, bom quase tudo, que fazem não tem como finalidade chamar a nossa atenção para um verdade fundamental. Assim, o homem volta ao trabalho e pensa, afinal a vida não é como o teatro, existem demasiadas peças em cena ao mesmo tempo para que alguma coisa faça um sentido pleno de descoberta. Não sei porquê, mas isto faz com que o seu pensamento seja levado a algumas teorias do caos, já sabem se uma abelha na China, blá, blá blá. Mas pensem, imaginem que hoje este mesmo homem ao sair de casa se esquece da chave do carro, volta para trás, demora a encontrá-la, quando regressa à rua encontra uma amiga que não via há anos, conversam dois minutos sobre nada, e ele pensa: Talvez, por vezes, recorra à solidão como desculpa infantil para não sofrer. E ela diz: Sabes, nunca percebi porque é que de um momento para o outro nos deixamos de ver, completamente. Ele por segundos pensou que tinha dito aquilo que pensou, depois sorriu, isto acontece tantas vezes que é completamente desnecessário racionalizar. Sorriu, falou também, nada de importante, depois foi trabalhar. Este é o mesmo dia da luz, da mulher que chora, etc. O que o leva a pensar: ainda não são onze da manhã, trabalhei pouquíssimo e aposto contra todas as hipóteses ao querer tirar um significado preciso de actos aleatórios que ao serem combinados entre si levam a que tudo seja possível: no passado, no presente, no futuro. Ou seja, e por aqui se interrompe este duvidoso pensamento sobre a vida, no interior de cada um de nós um número ainda não definido de acontecimentos faz com que todos os dias sejamos este ser que conhecemos, depois cada um de nós, mais um número indefinível de animais, vegetais, minerais, etc., com a nossa simples presença ou o nosso movimento desencadeamos um conjunto de acontecimentos. Tudo isto é apenas acessível no quotidiano se fizermos a síntese do que acontece, tomando-nos como o centro de tudo. Então porque é que insistimos em pensar que existe um sentido para a vida? Obviamente porque não existe. Essa é aliás a verdadeira chave do pensamento: adivinhar a existência de alguma coisa que não existe.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]



<< Página inicial