sublinhar

terça-feira, março 01, 2005

se eu soubesse o que estas palavras dizem*

Alguns dias existem assim: quietos. Entre sons vagos que ouvimos por entre o não ouvir.
Estou no escritório porque é um bom sitio para se estar, está frio, mas hoje, coisa rara, há um ligeiro calor porque o sol brilha desde o meio-dia. Podia ser um presságio, mas creio que não é.
Eu escrevo, faço um intervalo, sabendo que isso implica sair mais tarde, mas não faz mal. É que estava sentado a ver a luz do sol entrando pela janela e dando aquele brilho comovente (estranho adjectivo, admito) ao chão de madeira da sala. E pensei que tu já existias em mim no tempo em que eu era criança. É estranho, senti isso, assim de repente, como uma alucinação, encaixas nas tardes todas da minha vida. estás lá. Não me perguntes o que quero dizer com isso, eu não sei. Apenas digo, escrevo, à espera que isso me dê alguma espécie de compreensão. Não encontro. Desconfio até que escrevo mais um texto circular, em volta de mim. ou então não. Mas vejo-te na casa da minha avó, o meu espaço mítico, como se alguma vez tivesses sido nele uma presença real.

Reparo que o que escrevo tem algo de absurdo. Sou constante na ironia sobre mim mesmo, é uma espécie de defesa contra diversas maleitas. Mas, é mesmo estranho que faças sentido num lugar assim.

Talvez já não te possa circunscrever aos lugares específicos onde te vi, ou às palavras. Como se crescesses em mim, envolvendo todos os lugares, todas as memórias. O mais estranho é que não provocas conflito... entras pelas minhas tardes de infância com o mesmo sorriso com que entras nas minhas tardes desta vida, e eu sorrio de volta, completamente fascinado.

Confesso: Tenho medo das palavras (e dos gestos) por isto mesmo: porque existem aquém do que sinto. A compreensão é também apenas um farrapo daquilo que somos. Como quando comemos uma manga numa tarde de calor, sentados ao sol, propositadamente ao sol, e nos deixamos levar pelo sabor: é que se quisermos saber, teremos que identificar a parte do sabor que nos transmite a língua, o nariz, os lábios, e os dedos das mãos, e a parte do sabor que sentimos ao comer a manga e que existe porque lemos jorge amado, ouvimos caetano, bebemos o sumo de outra manga escorregando no corpo de uma mulher. Uma manga não é só uma manga, não pode ser, nunca será.

Afinal, tu existes em mim desde sempre, marcada na minha pele desde sempre, sorrindo-me nas tardes de infância no tempo em que havia infância e eu também sorria. Não há nisto nada de místico. É real. Palpável. Estás lá, sempre que me lembro, embora nunca apareças nos instantâneos dos dias de festa.

E agora eu sopro ao teu ouvido uma palavra: amo-te. porque finalmente posso devolver o amor que me deste, sem que soubesse-mos, durante todos os dias da minha vida.


*não minto. não sei.

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