sublinhar

quinta-feira, setembro 29, 2005

Incompreensão


Estou farto que me tentem compreender. Estou farto de vírgulas. Estou farto. Ponto

Ainda são dezasseis horas e apetece-me a forca bem no centro de uma praça de Espanha onde sei por acaso que corre uma brisa fresca. Apetece-me poder dizer: fodam-se. Não me apetece acordar hoje e miseravelmente estou acordado há precisamente demasiadas horas. Até as inevitáveis letras me aparecem difíceis e sinto uma vontade urgente de insultar os outros. Ainda hoje não são mais que dezasseis horas a contar pelo sino da igreja e já me apetece que hoje seja uma eternidade qualquer sem más horas sem vontades sem urgências.

Estou farto que me queiram ouvir. Estou farto de perguntas. Estou farto. Ponto.

Ainda não passaram mais de dois minutos desde que comecei a escrever e já não me apetecem as palavras. Prometo-vos um jarro de água fresca ou uma desilusão qualquer ou antes de mim a morte. Detesto igrejas e os sinos e as interrogações surdas de quem passa. Detesto sobretudo sentir.

Estou farto que me ouçam. Estou farto de exclamações. Estou farto. Ponto.

As palavras têm o mesmo fedor do CO2 dos autocarros suecos em segunda mão. A mesma sujidade de um milhão de sarjetas reunidas em confederação. A mesma obscenidade que as palavras dos filhos-da-puta. Apetece-me sobretudo hoje dormir e não que as pessoas exclamem em êxtase os delírios da nossa iniquidade.

Estou farto de esperar por mim. Estou farto de reticências. Estou farto. Ponto.

E as palavras são como ferrugem minha encobrindo a faca e a ideia da faca.



Fotografia:Mbole-Knife

quarta-feira, setembro 28, 2005

Dia 0


sexta-feira, setembro 09, 2005

Dos dias


A memória deslumbra-se com as palavras. Alguém me telefona a perguntar se me lembro. Suponho que sim, mas há muitas palavras numa resposta onde bastava um sim. As pessoas morrem, portanto. Não devemos esquecer que as pessoas morrem por um tanto. Conheço casos de pessoas que morrem por pouco mais de duzentos euros.

Não há espaço para nos lembrarmos se a memória se faz de tantas palavras contraditáveis. É preciso não esquecer, por exemplo, de segurar o teu braço para que não caias. Ou dizer, ao telefone: sim, lembro-me, claro. E talhar na face um espanto ofendido e invisível.

Convém salvaguardar os lugares do silêncio. Ou o espaço do grito. Convém não esquecer. As pessoas fogem, portanto. Em círculos, as pessoas fogem no regresso. Provavelmente amanhã levanto-me cedo e vou trabalhar.

Quando as pessoas acordam um rádio diz: acorda. O quotidiano não se deslumbra com as palavras. Faz-se do exacto. Conheço casos de pessoas que trabalharam a vida inteira e um dia morreram a delirar ditando ordens ao vazio. Se um dia eu morrer quero que me façam o favor da memória.

Convém não exagerar. As palavras carecem de destino, como as balas.

quinta-feira, setembro 08, 2005

a segunda morte do sr. silva


Aconteceu-lhe morrer no dia dois de Agosto de dois mil e cinco, sentado à secretária do seu escritório enquanto passava os olhos por um relatório, que ele próprio escrevera, sobre as condições de trabalho no segundo bairro da cidade.

Trinta dias depois, no dia um de Setembro de dois mil e cinco, foi encontrado deitado sobre a secretária por um colega de trabalho, o único, que regressava ao emprego depois das férias.

Ao sentir o cheiro nauseabundo que se desprendia do cadáver apodrecido o colega pensou tratar-se de qualquer outra pessoa. Mais tarde, quando a policia o informou de quem se tratava, resolveu tomar a seu encargo comunicar com os familiares do morto.

Essa tarefa revelou-se impossível desde o primeiro minuto, ao esforçar a memória em busca de qualquer referência à família do seu antigo colega, não encontrou nas lembranças de doze anos de trabalho qualquer, por mais insignificante que fosse, pormenor da vida pessoal do outro. Reflectiu e descobriu que ele próprio nunca lhe revelou nada sobre a sua vida.

Depois de um dia cercado pela impossibilidade da tarefa ficou em profundo desânimo. Tinha passado as férias a dois quarteirões dali, fechado em casa, sozinho, a ler, e nem por minuto lhe havia ocorrido contactar o colega que devia estar no escritório a trabalhar.

Sem conseguir contactar ninguém, sem sequer saber onde era a casa do antigo colega, tomou também como sua a tarefa de organizar o funeral.

No funeral chovia e ele era a única pessoa presente. Por falta de dinheiro o colega jazia agora num despropositado sítio do cemitério, entalado entre o muro exterior e um regato que passava perto.

Dos habitantes daquela parte da cidade, dizia o relatório que o seu antigo colega escrevera, sabia-se que morriam de doenças associadas à contaminação proveniente dos cadáveres, provavelmente pela água daquele regato.

Ao voltar ao escritório, no dia seguinte ao funeral, descobriu que este teria que fechar porque o único cliente, o município, não tolerara o atraso na entrega desse mesmo relatório.

Sem emprego, voltou a casa, despiu toda a roupa, desligou todas as luzes e deitou-se na cama, à espera.

sábado, setembro 03, 2005


















TE QUIERO

Tus manos son mi caricia
mis acordes cotidianos
te quiero porque tus manos
trabajan por la justicia

si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos

tus ojos son mi conjuro
contra la mala jornada
te quiero por tu mirada
que mira y siembra futuro

tu boca que es tuya y mía
tu boca no se equivoca
te quiero porque tu boca
sabe gritar rebeldía

si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos

y por tu rostro sincero
y tu paso vagabundo
y tu llanto por el mundo
porque sos pueblo te quiero

y porque amor no es aureola
ni cándida moraleja
y porque somos pareja
que sabe que no está sola

te quiero en mi paraíso
es decir que en mi país
la gente viva feliz
aunque no tenga permiso

si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.




mario benedetti
e marc chagall

( hoje é o primeiro dia do resto da nossa vida )