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quinta-feira, setembro 08, 2005

a segunda morte do sr. silva


Aconteceu-lhe morrer no dia dois de Agosto de dois mil e cinco, sentado à secretária do seu escritório enquanto passava os olhos por um relatório, que ele próprio escrevera, sobre as condições de trabalho no segundo bairro da cidade.

Trinta dias depois, no dia um de Setembro de dois mil e cinco, foi encontrado deitado sobre a secretária por um colega de trabalho, o único, que regressava ao emprego depois das férias.

Ao sentir o cheiro nauseabundo que se desprendia do cadáver apodrecido o colega pensou tratar-se de qualquer outra pessoa. Mais tarde, quando a policia o informou de quem se tratava, resolveu tomar a seu encargo comunicar com os familiares do morto.

Essa tarefa revelou-se impossível desde o primeiro minuto, ao esforçar a memória em busca de qualquer referência à família do seu antigo colega, não encontrou nas lembranças de doze anos de trabalho qualquer, por mais insignificante que fosse, pormenor da vida pessoal do outro. Reflectiu e descobriu que ele próprio nunca lhe revelou nada sobre a sua vida.

Depois de um dia cercado pela impossibilidade da tarefa ficou em profundo desânimo. Tinha passado as férias a dois quarteirões dali, fechado em casa, sozinho, a ler, e nem por minuto lhe havia ocorrido contactar o colega que devia estar no escritório a trabalhar.

Sem conseguir contactar ninguém, sem sequer saber onde era a casa do antigo colega, tomou também como sua a tarefa de organizar o funeral.

No funeral chovia e ele era a única pessoa presente. Por falta de dinheiro o colega jazia agora num despropositado sítio do cemitério, entalado entre o muro exterior e um regato que passava perto.

Dos habitantes daquela parte da cidade, dizia o relatório que o seu antigo colega escrevera, sabia-se que morriam de doenças associadas à contaminação proveniente dos cadáveres, provavelmente pela água daquele regato.

Ao voltar ao escritório, no dia seguinte ao funeral, descobriu que este teria que fechar porque o único cliente, o município, não tolerara o atraso na entrega desse mesmo relatório.

Sem emprego, voltou a casa, despiu toda a roupa, desligou todas as luzes e deitou-se na cama, à espera.

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