sublinhar

quinta-feira, agosto 18, 2005

de vez em quando, um homem




Um homem caminha pela rua e uma mulher, nua, está estendida numa cama. As ideias recorrentes são luminosas como as mnhãs de março. Espreito pela janela, escondido pelo cortinado, lá fora: O homem que caminha pela rua é todos os dias um homem diferente, sempre o mesmo homem, que caminha, sozinho pela rua.

As palavras são sonhos feridos e lembro-me que aqui dentro do quarto a mulher estendida na cama tem o pensamento de muitas mulheres que de pé, caminham na rua, mas ao mesmo tempo é apenas uma mulher, sempre a mesma mulher.

As ideias recorrentes são como lugares comuns amorais.

O homem que caminha é o ser passivo e a mulher na cama o ser activo. Apenas ele caminha e ela está deitada numa cama.

Não haver mais que estas duas pessoas na ficção toda de um homem. Eis a triste notícia que lego à humanidade. O homem caminha e porventura chora a mulher deitada na cama tlavez sorria. Ou a mulher chora enquanto o homem que caminha, sozinho, sorri.

Duas pessoas são sempre o mundo todo. Ou apenas uma. Ou apenas o mundo, sem pessoas.

Em criança pensava se o mundo sem pessoas podia existir. É talvez a forma mais metafórica de matar deus, imaginar um mundo que existe apenas porque existe, sem nenhum eterno sentido impingido por pessoas com medo.

Quando era criança pensava estas coisas baixinho e dizia: quando for grande quero ser um homem que caminha, triste, sob a chuva.

Quando era criança pensava que os homens tristes eram os mais corajosos. Agora já não.

Gostava que o mundo servisse um propósito para além de existir mas um dia, enquanto comia um gelado e dizia, baixinho: amo-te, descobri que deus era uma ideia demasiado bonita para mim.

Quis o destino que crescesse o homem que caminha sentado num sofá grande, com um padrão abdominável de flores, a ler ininterruptamente. Ao mesmo tempo uma mulher deitada, nua, numa cama caminhava pela rua com uma cara triste. Chorava.

Uma vez um amigo contou-me que sonhrara com tangerina. E então eu também sonhei com casas de afectos roubados, céus laranja em praias de prédios desertos e ruas iluminadas a néon. Ou com vacas em terras da bélgica, ou com o eterno passar de pessoas na rua dos douradores.

Quisera ser rei se pudesse, para ser alguma coisa definitiva em que não acreditasse.

Uma vez, uma mulher de pé, na sala de aula, perguntou-me: que perguntas fazes com o teu silêncio? E eu quase lhe disse que a única coisa que me interessa no mundo é perguntar.

Nesses dias havia uma rapariga com cabelo azul e os com dedos injectados de heroina. A rapariga era puta na casa de banho de um imundo centro comercial. Morreu. Suicídio. Sorria muitas vezes a rapariga de cabelo azul.

Se me perguntam porquê ainda estas palavras todas, porquê este sem-fim de interrogações nebulosas, só posso dizer que desde sempre, desde o tempo em que de joelhos dobrados indagava sobre o ir e vir do homem triste que passava, insisto em perguntar porquê.

Piotr Kowalik, Soul Cages

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