Dos dias
A memória deslumbra-se com as palavras. Alguém me telefona a perguntar se me lembro. Suponho que sim, mas há muitas palavras numa resposta onde bastava um sim. As pessoas morrem, portanto. Não devemos esquecer que as pessoas morrem por um tanto. Conheço casos de pessoas que morrem por pouco mais de duzentos euros.
Não há espaço para nos lembrarmos se a memória se faz de tantas palavras contraditáveis. É preciso não esquecer, por exemplo, de segurar o teu braço para que não caias. Ou dizer, ao telefone: sim, lembro-me, claro. E talhar na face um espanto ofendido e invisível.
Convém salvaguardar os lugares do silêncio. Ou o espaço do grito. Convém não esquecer. As pessoas fogem, portanto. Em círculos, as pessoas fogem no regresso. Provavelmente amanhã levanto-me cedo e vou trabalhar.
Quando as pessoas acordam um rádio diz: acorda. O quotidiano não se deslumbra com as palavras. Faz-se do exacto. Conheço casos de pessoas que trabalharam a vida inteira e um dia morreram a delirar ditando ordens ao vazio. Se um dia eu morrer quero que me façam o favor da memória.
Convém não exagerar. As palavras carecem de destino, como as balas.
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