sublinhar

quinta-feira, março 30, 2006

sujeito de retribuição

**Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos, quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonias exibidas compostas de não sei que objectos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um filho morto. al berto









"and if i show you my dark side will you still hold me tonight? pink floyd"


enumero as coisas que me dizem de ti. numa contagem decrescente.
hoje é o dia em que todas essas coisas falam. um lírio. um branco
de céu onde uma nuvem se desenha
em fuga. a luz
que se detém numa só gota de orvalho. um pensamento. o melro que lhe
debica a polpa. o rumor do mar nas areias da praia. a pele recortada
dos lapiás do corpo. os arrumos que o tempo
encontra em mim. repouso agora num cálice de vinho ao final do dia.
olhando as cavernas incandescentes que o lume abre na lareira da sala. palavras
e palavras. e tanto silêncio entre elas. há, ainda hoje,
um cheiro a pão torrado misturado com o aroma do café com leite e o som de um
sino invocando o dever. tudo isso implícito neste sentimento antigo
de que o mundo é incapaz de resistir à
força do vento que sopra.
olho todos os meus livros empilhados por afectos na estante da sala. num calesdoscópio
de cores. cheiros. texturas.
aí se apertam os pedaços da minha vida. todos eles levam os sublinhados
dos meus passos. as personagens do assombro
que me habitam. como tu. talvez a solidão
seja esse vento maior que nós. sabe-se lá porquê acontece-nos. a vida escorre-nos muitas vezes
por entre
esses momentos de ausência.
tanto faz. a eternidade é um só momento. e um nome. um só nome.

sempre tive medo que os outros me deixassem, ou que eu
partisse. tanto faz. outra coisa, nunca soube dizer:
amo-te. pensei sempre que isso estivesse implícito, algures na
melancolia dos gestos. é desse tempo, imensurável, que vem esta escrita.
nasceu silenciosa. sempre tive
medo de partir sem asas. sem que essa metamorfose lenta e única me
transfigurasse a face. e me abrisse no corpo esse espanto. sempre tive medo que os dias me esgotassem
a vontade. e me devorassem os olhos. mas digo de ti. e de mim. e a vida acontece-me.
ainda que silenciosa. ainda. como a anunciada polpa sumarenta de um pêssego. olho
as paredes desta casa. desta minha construção que desafia a ausência e digo-te.
a eternidade é um só momento. um só. e um nome. um só. e assim basta. basta.

**a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por detrás das palavras (al berto)**

não sei se a morte é esse esquecimento das coisas. talvez. mas hoje é o dia em que todas as coisas
falam. e me dizem desse nome. dessa lentíssima metamorfose.
de asas. ou talvez mão. e
outra mão. talvez apenas assim. um imperceptível rumor contra a erosão do vento. palavras que escrevo em busca de
tecto e chão para os meus dias. gestos erguidos na crosta da terra. como lapiás do meu corpo.
do teu corpo. escultura das horas.

estas palavras, segredo-vos, são
assim: a lentíssima construção de um abrigo.


** escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada al berto)**
ou esse abrigo de silêncio. ou a polpa sumarenta de um pêssego anunciada
por um melro. ou a distância encurtada entre uma nuvem e o céu. que ela habita. sei lá
se a morte existe. ou se ela é esse esquecimento das coisas. aqui te reclamo um nome. aqui te recorto
a negro contra a lisura branca dos dias. e te arrumo. entre o sangue e a matéria gasosa
do meu corpo. como página decorada da minha
vida. na estante da sala. na incandescência do lume familiar. da lareira da sala.
aqui pertences. marca
que o espanto vai deixando acontecer nos meus olhos.







é. contra a ausência. é assim que hoje enumero todas as coisas que me dizem de ti. com a urgência
de reter a memória delas. para que o meu corpo
não perca essa sombra que se projecta
quando caminho. e silenciosamente asas me cresçam. antes.


** al berto,
blimunda e baltasar, enraízamento da palavra: a mão. e a outra mão.



sábado, dezembro 24, 2005















o natal o natal ah o natal



foto de sergio ranalli:photosynt.net/ranalli/maisfoto.html

sexta-feira, dezembro 16, 2005

















HOJE O TEMPO NÃO ME ENGANOU. Não se conhece uma aragem na tarde. O ar queima, como se fosse um bafo quente de lume, e não ar simples de respirar, como se a tarde não quisesse já morrer e começasse aqui a hora do calor. Não há nuvens, há riscos brancos, muito finos, desfiados de nuvens. E o céu, daqui, parece fresco, parece a água limpa de um açude. Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu mas sim em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como um céu e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu.



poemaprosa de josé luís peixoto

foto de uma pintura de Dmitrij Markelov - www.godotartgallery.com/godot.asp


segunda-feira, novembro 21, 2005

talvez minutos antes

Não tenho a certeza de que as palavras roubadas ao tempo possam dizer mais do que um suspiro. Custa-me reler este blog como se fosse uma casa abandonada. Pergunto-me se não poderia criar mais tempo. Mas o cansaço que consome os dias não é feito de minutos desaparecidos, ou segundos consumidos pelas chamas do quotidiano. O cansaço que cobre de negro a tinta da caneta é feito de outras coisas: como o olhar do menino para o balão azul e a sensação angustiante de nunca o conseguir alcançar.


quinta-feira, outubro 27, 2005

podia ser

Não acredito que eu possa abandonar assim o jogo de acreditar. Ironizo. Como se o precipício fosse um lugar cheio de operários da construção civil e eu pudesse dizer, enfadado, que não há público para a minha morte.


Talvez fosse um olhar apanhado por acaso no ocaso do dia. Talvez nem fosse o olhar mas o reflexo dos faróis numa memória qualquer. Talvez fosse apenas a vontade de vos dizer: ainda vivo. Talvez fosse morrer.

Não sei se é o corpo cansado ou apenas puro esquecimento. Ou, ainda antes disso, um medo qualquer de qualquer coisa. Podia ser a morte ou apenas a simples palavra. Ou, antes disso, uma qualquer memória. Podia ser, se eu soubesse, podia ser.


Seria necessário escrever, se houvessem palavras. Ou se os sussurrou que ouço não fossem os ramos das árvores passeando-se pela noite. Poderia ser a noite, ou um vazio profundo. Ou, ainda antes de mim, uma criança que chora.

Podia ser que ela vos dissesse: podia ser.

quinta-feira, outubro 20, 2005

slow de alcova a duas vozes

estamos aqui
deitados sob este céu nocturno
este testemunho imenso e então eu digo as palavras mais breves. por
exemplo
tu
e com a certeza de ter inventado
novo vocábulo
encosto a minha à tua boca
e devagar
a percorro toda
língua a língua
como quem saboreia um acontecimento e o quer
partilhar. ah, que alegria...

mas na verdade
esta noite vai deixar-nos uma pequena tristeza.
uma vocação de ser
assim impossivelmente um outro.
é uma vocação que nos desliza por entre os dedos.
pele com pele adivinhada.
exige a presença de uma mão
e outra mão. é a medida exacta e breve de um vocábulo
pronunciado
a medo
entre lençóis. sei que digo também
amo-te
como quem pensa ter inesperadamente chegado
a casa. e digo também
olha querido
como é perfeita a curva
em que o meu olhar se debruça. os teus olhos aguados são
o meu destino. há na tua íris uma menina
que sou eu. reconheço-me aí. mulher menina.
um segredo que desvendas. mas
a noite acaba e eu sinto desvanecer-me em ti. fica
fica mais um pouco.

sei que inventaremos um novo léxico
para sussurrar uma existência. fora do tempo
a construção da linguagem
faz-se de seda. abraços de casulo. na penetração
do corpo pelo corpo. quem entra em quem. quem
de nós recebe a palavra como consagração
das horas. quem. eu. tu.

..................... __ ..........................

e agora conto-te. destes momentos que são
entre uma madrugada
de bruma e um ar pesado impregnado de jasmim. quero-me
inteira. capaz de feitos assombrosos. para nessa urgência te revelar
este mistério. agora
te pronuncio lenta. lentamente.
fazendo ressoar em mim cada som que é o mais
pequenino lugar do teu corpo. um mapa que reconstruo por dentro dos meus
olhos. os percursos do desejo. as rotas de seda. seda.
da boca apetecível.
dessa língua quente. o rasto translúcido da tua saliva
nos meus seios. do meu ventre que
se eleva de encontro ao teu. numa importante
declaração de ardor. das minhas mãos que apertam as tuas nádegas.
dum pomar de braços e pernas. ou uma inflorescência de beijos
no caule erecto do sexo - evolam-se os suspiros
como cântico de amorosas elegias. há uma réstea de luz no semicerrado
olhar. o meu procura o teu. para lhe disputar uma identidade.

( resgatarei uma conversa. como quem
necessita de um sangue que o alimente. como quem
deitado à beira de um outro corpo
se descobre. chorarei. então.
porque as grandes revelações se fazem também de lágrimas.
por nós chorarás também tu. aqui. entre os teus
braços a vida parece um incrível acontecimento. fica. fica mais um pouco. )


( leio para ti **Tu choravas e eu ia apagando
com os meus beijos os rastos das tuas lágrimas
- riscos na areia mole e quente do teu rosto.
Choravas como quem se procura.
E eu descobria mundos, inventava nomes,
enquanto ia espremendo com as mãos
o meu sangue todo no teu sangue. ** )

falo-te
com esta voz que quase me desconheço. deste futuro passado.
da urgência de uma mão na outra mão. da medida exacta.
da transformação da carne. na invasão interior.
uma ocupação de seiva no sangue e saliva. a flor
mais secreta dos nossos dias. no coração fazemo-nos
um do outro como sangue equivocado. veias como rios
em veias como mares. veias como linhas perfeitas.
perpendiculares. tangenciais verdades. quase direi
nesta ocupação há uma só verdade. tu. eu. jardim de palavras. gestos. beijos.

e então tu dizes assim
como quem pensa um novo pensamento
vamos soprar para longe a realidade. vamos,
juntos, porque só juntos
existimos, fugir da voz razoável
que nos prende os gestos e nos despenha
nos abismos do quotidiano. nunca ninguém o disse, mas é a esta pasmaceira
que se acerca de nós sempre que nos deixamos envolver pela constância dos dias
que se chama inferno.

oico-te.
e sinto dentro de mim a maravilha
que nasce com a descoberta das coisas novas. tu puxas-me para ti e entre
os teus braços eu descanso desta sombra. brandamente vais contando da melodia
que o teu corpo escreve
só para mim.

o mundo existe apenas no local solar para onde
os teus olhos olham, do outro lado apenas existe
uma sombra, gigantesca, sem sentido, sem sentidos. como se eu fosse
cego sem essa luz,
como se as minhas mãos perdessem
o seu sentido primordial: o teu corpo. não, ou antes sim, ou talvez,
suporto este vazio de coisas comuns, esta falta dessa terra fecunda: o teu ventre, onde...

sulcas em mim a certeza de existir. é. também eu não sei se sou
ou não sou. ausente de ti
apenas imagino o meu corpo. o meu nome
despe-se da sua origem. como se a minha fosse a tua genealogia.
sem ti a minha história
dissolve-se. rasga uma das tuas páginas
crava-a aqui. entre as minhas pernas. uma importante
página que narre todos as viagens que em mim farás. sim.

( leio para ti **Não sei se o mundo existia e nós
existiamos realmente.
Sei que tudo estava suspenso,
esperando não sei que grave acontecimento,
e que milhares de insectos paravam e
zumbiam nos meus sentidos.
Só a minha boca era uma abelha inquieta
percorrendo e picando o teu corpo de beijos.** )

e agora posso dizer uma coisa?
não sei mesmo se sem ti sou ... a importância
do que penso
inscreve-se somente
nesses espaços quase inexistentes
entre ti e mim. quase inexistentes...


(leio para ti ** Desviei os meus olhos para ti:
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.**)



** albano martins** blimunda e baltasar

quinta-feira, setembro 29, 2005

Incompreensão


Estou farto que me tentem compreender. Estou farto de vírgulas. Estou farto. Ponto

Ainda são dezasseis horas e apetece-me a forca bem no centro de uma praça de Espanha onde sei por acaso que corre uma brisa fresca. Apetece-me poder dizer: fodam-se. Não me apetece acordar hoje e miseravelmente estou acordado há precisamente demasiadas horas. Até as inevitáveis letras me aparecem difíceis e sinto uma vontade urgente de insultar os outros. Ainda hoje não são mais que dezasseis horas a contar pelo sino da igreja e já me apetece que hoje seja uma eternidade qualquer sem más horas sem vontades sem urgências.

Estou farto que me queiram ouvir. Estou farto de perguntas. Estou farto. Ponto.

Ainda não passaram mais de dois minutos desde que comecei a escrever e já não me apetecem as palavras. Prometo-vos um jarro de água fresca ou uma desilusão qualquer ou antes de mim a morte. Detesto igrejas e os sinos e as interrogações surdas de quem passa. Detesto sobretudo sentir.

Estou farto que me ouçam. Estou farto de exclamações. Estou farto. Ponto.

As palavras têm o mesmo fedor do CO2 dos autocarros suecos em segunda mão. A mesma sujidade de um milhão de sarjetas reunidas em confederação. A mesma obscenidade que as palavras dos filhos-da-puta. Apetece-me sobretudo hoje dormir e não que as pessoas exclamem em êxtase os delírios da nossa iniquidade.

Estou farto de esperar por mim. Estou farto de reticências. Estou farto. Ponto.

E as palavras são como ferrugem minha encobrindo a faca e a ideia da faca.



Fotografia:Mbole-Knife

quarta-feira, setembro 28, 2005

Dia 0


sexta-feira, setembro 09, 2005

Dos dias


A memória deslumbra-se com as palavras. Alguém me telefona a perguntar se me lembro. Suponho que sim, mas há muitas palavras numa resposta onde bastava um sim. As pessoas morrem, portanto. Não devemos esquecer que as pessoas morrem por um tanto. Conheço casos de pessoas que morrem por pouco mais de duzentos euros.

Não há espaço para nos lembrarmos se a memória se faz de tantas palavras contraditáveis. É preciso não esquecer, por exemplo, de segurar o teu braço para que não caias. Ou dizer, ao telefone: sim, lembro-me, claro. E talhar na face um espanto ofendido e invisível.

Convém salvaguardar os lugares do silêncio. Ou o espaço do grito. Convém não esquecer. As pessoas fogem, portanto. Em círculos, as pessoas fogem no regresso. Provavelmente amanhã levanto-me cedo e vou trabalhar.

Quando as pessoas acordam um rádio diz: acorda. O quotidiano não se deslumbra com as palavras. Faz-se do exacto. Conheço casos de pessoas que trabalharam a vida inteira e um dia morreram a delirar ditando ordens ao vazio. Se um dia eu morrer quero que me façam o favor da memória.

Convém não exagerar. As palavras carecem de destino, como as balas.

quinta-feira, setembro 08, 2005

a segunda morte do sr. silva


Aconteceu-lhe morrer no dia dois de Agosto de dois mil e cinco, sentado à secretária do seu escritório enquanto passava os olhos por um relatório, que ele próprio escrevera, sobre as condições de trabalho no segundo bairro da cidade.

Trinta dias depois, no dia um de Setembro de dois mil e cinco, foi encontrado deitado sobre a secretária por um colega de trabalho, o único, que regressava ao emprego depois das férias.

Ao sentir o cheiro nauseabundo que se desprendia do cadáver apodrecido o colega pensou tratar-se de qualquer outra pessoa. Mais tarde, quando a policia o informou de quem se tratava, resolveu tomar a seu encargo comunicar com os familiares do morto.

Essa tarefa revelou-se impossível desde o primeiro minuto, ao esforçar a memória em busca de qualquer referência à família do seu antigo colega, não encontrou nas lembranças de doze anos de trabalho qualquer, por mais insignificante que fosse, pormenor da vida pessoal do outro. Reflectiu e descobriu que ele próprio nunca lhe revelou nada sobre a sua vida.

Depois de um dia cercado pela impossibilidade da tarefa ficou em profundo desânimo. Tinha passado as férias a dois quarteirões dali, fechado em casa, sozinho, a ler, e nem por minuto lhe havia ocorrido contactar o colega que devia estar no escritório a trabalhar.

Sem conseguir contactar ninguém, sem sequer saber onde era a casa do antigo colega, tomou também como sua a tarefa de organizar o funeral.

No funeral chovia e ele era a única pessoa presente. Por falta de dinheiro o colega jazia agora num despropositado sítio do cemitério, entalado entre o muro exterior e um regato que passava perto.

Dos habitantes daquela parte da cidade, dizia o relatório que o seu antigo colega escrevera, sabia-se que morriam de doenças associadas à contaminação proveniente dos cadáveres, provavelmente pela água daquele regato.

Ao voltar ao escritório, no dia seguinte ao funeral, descobriu que este teria que fechar porque o único cliente, o município, não tolerara o atraso na entrega desse mesmo relatório.

Sem emprego, voltou a casa, despiu toda a roupa, desligou todas as luzes e deitou-se na cama, à espera.