sublinhar

sábado, janeiro 08, 2005

os olhos azuis

Foi por essa altura que soube que eras prostituta domiciliada nas casas de banho de um centro comercial decrépito. Talvez por isso, naquela tarde, julguei encontrar um riscar incompreensível no teu olhar, nos teus olhos azuis, nos teus lindos olhos azuis. Não me aproximei, não faria sentido recordar uma conversa banal numa tarde que tinha acabado há muito. Lembro-me de a pele entre os teus dedos conter um sem número de marcas de agulha. Nessa tarde sorrias, não me lembro porque motivo. Acordaras há pouco, tinhas o cabelo molhado e, acho, anunciavas ao mundo, orgulhosamente, que morrias. Lembro-me de pensar isso. Falavas com alguém, estavas precisamente a comprar droga, foi por isso nós, ali ao lado, ficamos em silêncio. Quando te sentaste para beber um café limitei-me a sorrir, lembro-me bem. Não disse uma única palavra. É tão estúpido recordar agora esse sorriso. Sorri porque eras linda e isso bastava, bastava contra tudo. Nem sequer o teu nome lembro, devo ter sabido, senão naqueles dias, pelo menos no tempo em que ainda conversávamos sobre coisas banais. Agora, a tua voz deixou de ecoar há muito, só restam os teus olhos azuis e o teu sorriso e uma ideia da tua morte, sozinha, no teu quarto. Seria fácil perceber que sonhavas com algo mais do que uma dose de droga e uma noites absurdas em que, lembro-me, choravas muito. Havia alguém, já não recordo quem, que servia de vigilante a essa tua descida ao inferno. Eras tão linda, absurdamente linda, sempre, mesmo depois de um ano inteiro consumindo droga, bebendo, e fazendo sei lá aquilo que fazias. Aparecias e desaparecias como um relâmpago. Provocavas o mesmo susto, o mesmo espanto, o mesmo fascínio pela beleza. Um dia qualquer disseram-me que morres-te. Tiveram que me explicar por tal e tal, porque ninguém lembrava já o teu nome. Estúpidos, repetíamos que não fazia sentido, eras demasiado bela para morrer. Só isso. É absurdo lembrar que morremos todos um pouco nesse dia e nem sabíamos o teu nome. Chegavam os teus olhos azuis e uma alegria, que não sei de onde vinha, nos poucos momentos em que estavas sóbria. Como naquele dia, o último em que te vi: tinhas o cabelo molhado, olhavas o mundo com os teus grandes olhos azuis e sorrias. Havia uma infinita inocência naquele olhar.

[um dia morreremos todos outra vez, nas páginas de um livro]

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