sublinhar

quarta-feira, março 23, 2005

A insuficiência de um mundo

Um homem encosta-se à mesa. Olha o ecrã do computador e lê, com lentidão, nas sombras de palavras reflectidas. Pensa. Está sozinho na sala, sozinho no prédio, sozinho. O homem tosse ligeiramente, a mão direita vai até ao peito avaliando do estado dos pulmões, encolhe-se um pouco e depois senta-se. Na feia cadeira de plástico a disfarçar, produto barato, inadaptado, no fundo ridículo. Podia não estar frio aqui, isso ajudava, pensa. A culpa percorre o cérebro, como um pensamento ancestral, imune à lógica dos lugares. A culpa é minha, supõe. Mas, sejamos sinceros, o que o incomoda é um livro pousado sobre a cama, em descanso forçado. O que o incomoda são as páginas vibrantes que esperam pelos seus olhos sôfregos por uma história. Afinal, chove lá fora, e o homem, sentado em frente do computador, como quem finge escrever uma história, ou uma confissão.
Em certos dias desiste mesmo de tentar confundir com palavras a brevidade do mundo, e encolhe-se ainda mais no mundo fechado entre o nada e o nada. Percebe, quando de fugida apanha um sorriso vogando no ar, que ainda teria tempo para afagar com as costas da mão direita uma árvore perdida no centro de uma serra de que ouviu falar quando era criança. Sente-se perdido nesses pensamentos, ao ritmo lento de um autocarro apinhado de gente, as ruas passam, atravessam-se entre os seus olhos e o sonho e ele, perdido (gosta tanto desta palavra), pensa que um dia, como outro qualquer, o mundo desaparecerá do seu corpo.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]



<< Página inicial