Memórias fingidas
O adro de uma igreja, e eu nunca lá fui. Uns passos numa noite de chuva, sob a luz de um candeeiro de rua, com a sombra apropriada a quem se esconde, a gola do sobretudo tapando a cara, e uma certeza: não era eu. Uma arma guardada no bolso, um medo como causa de cada desamparado gesto e uma voz de mulher que dizia num sussurro: espera. E, o que dizer, da luz das velas, do cheiro acre de um monte de lixo amontoado à entrada e de um mendigo bêbado que pedia um cigarro? Nunca lhe dei esse cigarro, nem nunca ele me pediu. Não era eu, reafirmo. Se aquela mulher que me pedia para esperar, era, porém, alguém que eu conhecia de um livro, ou de um sonho, isso, não vos posso negar. Se ela morreu de um tiro de uma pistola que estava no meu casaco que nunca vi, isso não sei. Mas que a pistola era minha, ou que eu vi aquela mulher naquela noite, ou, simplesmente, que sei precisamente que noite era aquela, isso, desculpe, não lhe posso dizer. Posso aguardar toda a noite sob esta luz branca, acusadora, que se projecta na minha cara, ou, se preferir, toda a vida, porque, a verdade, é que esse crime, se o cometi, existiu apenas em sonhos, e este interrogatório, digo-lhe, é apenas má literatura.
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