sublinhar

segunda-feira, julho 04, 2005

car crash

Há algo de violentamente despropositado num embate. De acordo com as normas do bom senso deveria pensar nas peças do corpo condoídas pelo choque, mas, por uma daquelas agruras com que o cérebro nos leva a dispor as ideias em irracionais movimentações, pensei, no imediato, em dinheiro aplicado a peças de automóvel desfeitas. Há, estou certo, algo de perverso nesta forma de pensar ou, talvez, seja o corpo demasiado rápido nos seus raciocínios sobre si próprio que agindo tão depressa não precisa de qualquer orçamento de mecânico para concluir que está bem. Depois, suponho que algum tempo depois, o choque sente-se outra vez, como algo de fascinante, como algo de animalesco em nós que recolhe do embate uma estranha certeza sobre a combatividade dos corpos, ou então, apenas um reflexo de como a sobrevivência faz de nós uma espécie de heróis. Sendo que, neste caso, a sobrevivência num acto que não atenta realmente contra a nossa vida, faça de nós uma espécie singular de heróis: os da triste figura. É estranho, as toneladas de massa instantaneamente interrompidas no seu movimento, repercutem-se em nós várias vezes, em diferentes momentos. Isto ao mesmo tempo que o cérebro dispara fazendo uma espécie de tributo ao único deus da nossa era, fazendo contas e mais contas, planos de poupança, complicados cálculos entre a reparação e a compra de um carro novo, a crédito. Não tarda telefono ao banco como quem consulta um oráculo, mas, sinais dos tempos, a resposta vem lesta e exacta, já não se vendem prognósticos na esquina das ruas, apenas certezas e culpas. Em outro lugar o choque repercute-se vezes sem conta, teologicamente fechado na sua coerência de natureza quase-morta. Nesse campo é o corpo a nossa única certeza e, instintivamente, sabemos que tudo correu bem. Mas não agora, que de todos os lados surgem vozes urgentes que pretendem saber as causas, acções e consequências do que, em verdade, não é mais que a acção de uma lei da física. Eu, de vez em quando, ainda dou por mim a ter uns tremores, como se perguntasse ao corpo se ainda permanece inteiro. Mas suponho que chega de quotidiano por um dia... aproximemo-nos dos sonhos.

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