sublinhar

quarta-feira, maio 04, 2005

um post que fugiu a si próprio

Havia outras tardes. Ficou desse tempo uma ideia de que as tardes se multiplicavam e, como a memória é estranha, existiam apenas no espaço luminoso da primavera e do verão. Aliás, volto as páginas deste blog, e vejo que este despontar do calor me leva de imediato ao passado, a essas luminosas tardes. Primeiro foram as tardes da infância que recordo demasiado extensas, demasiado ilimitadas para uma criança que brinca sozinha. Não que eu brincasse sempre sozinho, acho que nem a maior parte das vezes, mas gostava de estar sozinho. Era precisamente na solidão que a imaginação quebrava as amarras e me deixava ir para grandes estádios de futebol, para países distantes, para outros planetas. Dessas tardes ficaram duas grandes paixões-eternas: o futebol e o ciclismo. O futebol primeiro, entre os bonecos do futebol de mesa, os cromos, a tv e o estádio municipal (agora com o habitual nome de D. Afonso Henriques). Esta paixão continua com a mesma intensidade, cheia de amores e de desamores profundos. Por exemplo, ontem fiquei contente com a vitória do liverpool apenas porque desde que saiu do benfica numa tentativa de fazer um golpe de estado no Sporting (e depois foi parar ao fcp) eu antipatizo profundamente com a personagem, mas também porque já sendo provinciano não preciso de imitar o provincianismo-nacionalista dos outros que o olham como a ponta da lança do prestigio nacional nesse ignoto estrangeiro. A outra paixão é o ciclismo, paixão algo estranha para quem nunca soube andar de bicicleta, mas ainda assim se encanta com a dureza do desporto, a solidão de um corredor isolado, a cadência de um pelotão compacto de uma grande prova. Esta paixão nasceu das tardes de infância em redor da volta mas só prevaleceu nas tardes ociosas da universidade a ver o tour. A seguir vieram outras tardes, mas esta já não tinham o sabor das anteriores, o seu tempo parecia o tempo certo, duravam na exacta medida que tinham que durar. São as tardes da sensualidade. Delas recordo tudo, de uma forma tão exacta, tão profunda, que as sei inscritas em quase tudo que sou agora. Mas da descoberta se passa depressa à euforia de ter descoberto, e aí o tempo ganha uma velocidade distinta, acelera. Nesse outro tempo as tardes passaram a ser pequenas. Havia a necessidade de fazer mais coisas do que as tardes o permitiam. Desse tempo ficaram inúmeras descobertas: o tabaco, a música, os livros, o álcool, a liberdade, o sexo (não por oposto, mas também não exactamente a sensualidade anterior), a mentira com objectivo, o desalento, a esperança, quase tudo suponho. E a imagem de Michael Jordan voando. Anos mais tarde, deprimido, e vogando à sorte pelas ruas de uma outra cidade, fui despertado por aquela música, acho que do seal, i believe I can fly (que se bem me lembro faz parte da banda sonoroa de um filme com ele) e que logo me lembrou esse poder sobre-humano do Jordan. Muitas vezes me passa pela cabeça, ao ver aqueles filmes sobre os anos trinta em nova iorque, que a minha geração também foi afortunada por poder ver, em directo, do outro lado de um enorme oceano, esse voo livre, essa precisão que tinha algo de divino. Paradoxalmente a única coisa que me incomoda no Jordam é a sua perfeição, incomodo que de certo modo foi esbatido pela sua passagem pelo bassebol. Sempre gostei de estrelas temperamentais, ao estilo de Pedro Barbosa, Ian Ulrich ou, o mais excelente dos exemplos, esse outro mito da perfeição: Jardel. Na sua primeira época no Sporting aprendi a olhar para ele como olhava para o Jordam dos Bulls. Sabia, até naquele jogo contra o benfica, que o Jardel, como a Juve resumiu, resolvia. Mas dado o meu gosto pelo temperamentalismo dos artistas, vivi a época seguinte, como aliás todos nós, pendurado à sombra daquela estranha novela. Depois, apesar do encantamento dos pés do menino desisti um pouco do futebol. No tour, Armstrong, que dada a rivalidade com Ulrich eu cheguei a detestar, ganhava tão facilmente que voltei a ver nele o Jordan, desta vez com a mesma precisão, profissionalismo e capacidade fora de série. Isto parecem memórias desportivas, eu que queria escrever sobre as tardes parei escrevi sobre o desporto. E ainda falta tanta gente que podia ficar toda a tarde nisto. Por exemplo: Redondo. Para quem não conheceu, há pessoas para tudo, era uma espécie de deus do meio campo. Ainda há poucos meses, liguei a tv enquanto estava a dar um jogo de veteranos e de uma imagem geral do campo identifiquei-o de imediato. Claro que parei para ver. Redondo. Não sei, se calhar sou das poucas pessoas do mundo que não consegue dizer o nome sem cair num mar de recordações. Redondo. Parece-me enorme, talvez idêntico a algumas pessoas quando dizem: eusébio. Eu digo Redondo, e logo a sua altivez, o seu estilo impecável, o seu porte (obrigado Gabriel), me surgem da memória. Ainda ontem, enquanto lia a verdade tropical do Caetano, e a partir de sugestões dele ali feitas, pensei que se uma equipa tivesse reunido Nesta, Cannavaro e Redondo muitos homens seriam tentados a rever os seus comportamentos sexuais. Porque, quem viu, e ainda os vê, jogar não pode deixar de admirar o quanto qualquer um deles se aproxima de um dançarino profissional. Claro que admirável em qualquer um deles é, mais linguagem cabalística, o seu conhecimento táctico, que os transformava (transforma) em exemplos de jogadores perfeitos. Mas não são apenas um maniche, ou um costinha, ou, digo isto com alguma tristeza, um Ricardo Carvalho porque eles têm a distinção, lá está: o porte, que os eleva acima do comum dos mortais jogadores de bola. Como disse: Redondo era um deus; como Maradona era um deus; como Jordam era um deus; e o menino é um deus. Eis um texto que não pretende nada mas que me deu prazer a escrever, menos pelo que de facto escrevi do que pelas memórias que vivi enquanto escrevia. Porra, lembram-se daquele dia em que o Nuno Gomes marcou aquele golo contra a frança no europeu de inglaterra? De onde veio aquele golo Nuno? – sempre me perguntei isso. De onde?

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