sublinhar

quinta-feira, julho 28, 2005

Keep Out



Se houvesse uma vida eu não saberia. suponho que agiria na exacta medida em que não o faço. se houvesse pecado certamente eu iria para o inferno que existisse. ou então, suponho, se houvesse vida eu morreria. parece-me lógico que a falta de destino fosse impeditiva, ou o medo, tanto faz. se houvesse um lugar onde pudéssemos falar, e uma linguagem, talvez até palavras/signos, eu diria: emudeci. e lamentaria o facto de havendo vida não puder morrer. se houvesse um destino, na vida que houvesse, eu criaria um deus, ou um deus criaria um destino na vida se coubesse.
eu morreria na vida se pudesse.

domingo, julho 24, 2005

Contra a nudez excessiva da vida

Acordo na rádio enquanto uma voz me diz que explodiu uma cafeteira eléctrica.

Só depois o meu corpo existe. Há algo de insuportável neste acordar todos os dias longe de nós.



Acontecem-me imagens de plástico, reproduzidas em papel brilhante e esses, tantas vezes, são os meus olhos. Acontecem-me vozes, ruído, fúrias, que preenchem o meu cérebro. E então eu penso… mas não penso.

Acordo na tv enquanto vejo imagens de pessoas mutiladas por toneladas de metal. Só depois, de esquecer, o meu corpo existe. Há algo de insuportável na dimensão de imaterialidade que aqueles corpos assumem.

A rapidez sugere que a distância entre o corpo saudável dos cereais e os corpos mutilados do noticiário não existe. Não existe a distância entre eles e eles próprios existem apenas como o seu reflexo.

As pessoas são a sua própria metáfora. Cada pessoa representa ao mesmo tempo a ideia que tem de si e a ideia que os outros têm de si.
Deixam de existir.



O meu corpo perde-se e sente-se só. Não há nada real ali, não há nada real no próprio real.



Regresso ao corpo.
Estendido ao sol, sentindo na boca o sabor do vinho tinto e abandonado a si próprio.

Talvez seja prudente abandonarmos a nudez pornográfica do plástico que não somos e vivermos a nudez real no nosso mundo imaginado.


Craig Srebnik, Aurora

paraíso perdido 3.2


Uma criança cresce no subúrbio e a agarra a bola enquanto a mãe o transporta de metro entre o bairro e a praia. O menino negro agarra com a toda a força a sua bola cor-de-laranja e já nem sorri. O que sabe o miúdo que agarra a bola, surdo ao mundo, com medo, enquanto me olha no comboio? Quantas vezes a bola que agarra lhe foi roubada em sonhos? Olha-me como se me sonhasse, ou como eu o olho, sem esperança, os dois. Quantas vezes fui o miúdo que, sem motivos, perdeu a bola que nem sequer agarrei com a mesma força com que o puto agarra a bola entre a confusão de corpos suados que ocupam a carruagem. Não sei as linhas com que se cose aquele olhar, para mim, agora, como se eu fosse um pedaço de liberdade a alcançar. Quando um miúdo perdido, agarrado a uma bola, me olha assim esqueço-me de dizer baixinho: desisto.

Massenzi, Life in the slum, 1996

segunda-feira, julho 18, 2005






Pedaço de mim
Chico Buarque/1977-1978
Para a peça Ópera do malandro, de Chico Buarque


Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus

quarta-feira, julho 13, 2005

Ainda antes da mecânica das letras


Posso fazer uma pausa e dizer: olho-te. Não creio que qualquer figura de estilo lhe acrescentasse algo. Os meus olhos chegam para envolver o teu corpo e dizer-me que respiro e, depois, dizer simplesmente: olho-te. Não espero deste gesto um poema, para transcendência basta-me o teu corpo, ali, precisamente onde o meu olhar pousa. Que eu te escreva num momento diferente daquele em que te olho não chega a ser realmente importante. Escrevo apenas para conservar esse olhar, para o segurar no preciso momento em que existiu, para guardar com nitidez a imagem da tua nudez, para guardar para sempre as tuas palavras. E não me importa que o texto descanse, como naquele momento o meu corpo descansava, porque ambos, as minhas palavras e o meu corpo, te olham a distâncias diferentes, enquanto dizem apenas: amo-te.

*"Reclining Lady With Feathers" 1998, Victor Vasquez

Olho-a ainda mais lentamente. Há qualquer coisa de sagrado neste acordar, neste corpo vivo, vibrante, e nesta alma dormente. Há qualquer coisa de sagrado nesta vontade de tocar. Aproximo a boca das suas costas, molho os lábios com a língua e beijo-a, levemente. Agora rodopia na minha direcção, sorri e diz












slow de alcova. melodia para duas bocas


estamos aqui
deitados sob este céu nocturno
este testemunho imenso e então eu digo as palavras mais breves. por
exemplo
tu
e com a certeza de ter inventado
novo vocábulo
encosto a minha à tua boca
e devagar
a percorro toda
língua a língua
como quem saboreia um acontecimento e o quer
partilhar. ah, que alegria...

mas na verdade
esta noite vai deixar-nos uma pequena tristeza.
uma vocação de ser
assim impossivelmente um outro.
é uma vocação que nos desliza por entre os dedos.
pele com pele adivinhada.
exige a presença de uma mão
e outra mão. é a medida exacta e breve de um vocábulo
pronunciado
a medo
entre lençóis. sei que digo também
amo-te
como quem pensa ter inesperadamente chegado
a casa. e digo também
olha querido
como é perfeita a curva
em que o meu olhar se debruça. os teus olhos aguados são
o meu destino. há na tua íris uma menina
que sou eu. reconheço-me aí. mulher menina.
um segredo que desvendas. mas
a noite acaba e eu sinto desvanecer-me em ti. fica
fica mais um pouco.

sei que inventaremos um novo léxico
para sussurrar uma existência. fora do tempo
a construção da linguagem
faz-se de seda. abraços de casulo. na penetração
do corpo pelo corpo. quem entra em quem. quem
de nós recebe a palavra como consagração
das horas. quem. eu. tu.

..................... __ ..........................

e agora conto-te. destes momentos que são
entre uma madrugada
de bruma e um ar pesado impregnado de jasmim. quero-me
inteira. capaz de feitos assombrosos. para nessa urgência te revelar
este mistério. agora
te pronuncio lenta. lentamente.
fazendo ressoar em mim cada som que é o mais
pequenino lugar do teu corpo. um mapa que reconstruo por dentro dos meus
olhos. os percursos do desejo. as rotas de seda. seda.
da boca apetecível.
dessa língua quente. o rasto translúcido da tua saliva
nos meus seios. do meu ventre que
se eleva de encontro ao teu. numa importante
declaração de ardor. das minhas mãos que apertam as tuas nádegas.
dum pomar de braços e pernas. ou uma inflorescência de beijos
no caule erecto do sexo - evolam-se os suspiros
como cântico de amorosas elegias. há uma réstea de luz no semicerrado
olhar. o meu procura o teu. para lhe disputar uma identidade.

( resgatarei uma conversa. como quem
necessita de um sangue que o alimente. como quem
deitado à beira de um outro corpo
se descobre. chorarei. então.
porque as grandes revelações se fazem também de lágrimas.
por nós chorarás também tu. aqui. entre os teus
braços a vida parece um incrível acontecimento. fica. fica mais um pouco. )


( leio para ti **Tu choravas e eu ia apagando
com os meus beijos os rastos das tuas lágrimas
- riscos na areia mole e quente do teu rosto.
Choravas como quem se procura.
E eu descobria mundos, inventava nomes,
enquanto ia espremendo com as mãos
o meu sangue todo no teu sangue. ** )

falo-te
com esta voz que quase me desconheço. deste futuro passado.
da urgência de uma mão na outra mão. da medida exacta.
da transformação da carne. na invasão interior.
uma ocupação de seiva no sangue e saliva. a flor
mais secreta dos nossos dias. no coração fazemo-nos
um do outro como sangue equivocado. veias como rios
em veias como mares. veias como linhas perfeitas.
perpendiculares. tangenciais verdades. quase direi
nesta ocupação há uma só verdade. tu. eu. jardim de palavras. gestos. beijos.

e então tu dizes assim
como quem pensa um novo pensamento
vamos soprar para longe a realidade. vamos,
juntos, porque só juntos
existimos, fugir da voz razoável
que nos prende os gestos e nos despenha
nos abismos do quotidiano. nunca ninguém o disse, mas é a esta pasmaceira
que se acerca de nós sempre que nos deixamos envolver pela constância dos dias
que se chama inferno.

oico-te.
e sinto dentro de mim a maravilha
que nasce com a descoberta das coisas novas. tu puxas-me para ti e entre
os teus braços eu descanso desta sombra. brandamente vais contando da melodia
que o teu corpo escreve
só para mim.

o mundo existe apenas no local solar para onde
os teus olhos olham, do outro lado apenas existe
uma sombra, gigantesca, sem sentido, sem sentidos. como se eu fosse
cego sem essa luz,
como se as minhas mãos perdessem
o seu sentido primordial: o teu corpo. não, ou antes sim, ou talvez,
suporto este vazio de coisas comuns, esta falta dessa terra fecunda: o teu ventre, onde...

sulcas em mim a certeza de existir. é. também eu não sei se sou
ou não sou. ausente de ti
apenas imagino o meu corpo. o meu nome
despe-se da sua origem. como se a minha fosse a tua genealogia.
sem ti a minha história
dissolve-se. rasga uma das tuas páginas
crava-a aqui. entre as minhas pernas. uma importante
página que narre todos as viagens que em mim farás. sim.

( leio para ti **Não sei se o mundo existia e nós
existiamos realmente.
Sei que tudo estava suspenso,
esperando não sei que grave acontecimento,
e que milhares de insectos paravam e
zumbiam nos meus sentidos.
Só a minha boca era uma abelha inquieta
percorrendo e picando o teu corpo de beijos.** )

e agora posso dizer uma coisa?
não sei mesmo se sem ti sou ... a importância
do que penso
inscreve-se somente
nesses espaços quase inexistentes
entre ti e mim. quase inexistentes...


(leio para ti ** Desviei os meus olhos para ti:
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.**)


albano martins ** com blimunda e baltasar

terça-feira, julho 05, 2005

as coisas simples são realmente simples









eu queria dormir mas falta-me o aconchego da tua voz







segunda-feira, julho 04, 2005

car crash

Há algo de violentamente despropositado num embate. De acordo com as normas do bom senso deveria pensar nas peças do corpo condoídas pelo choque, mas, por uma daquelas agruras com que o cérebro nos leva a dispor as ideias em irracionais movimentações, pensei, no imediato, em dinheiro aplicado a peças de automóvel desfeitas. Há, estou certo, algo de perverso nesta forma de pensar ou, talvez, seja o corpo demasiado rápido nos seus raciocínios sobre si próprio que agindo tão depressa não precisa de qualquer orçamento de mecânico para concluir que está bem. Depois, suponho que algum tempo depois, o choque sente-se outra vez, como algo de fascinante, como algo de animalesco em nós que recolhe do embate uma estranha certeza sobre a combatividade dos corpos, ou então, apenas um reflexo de como a sobrevivência faz de nós uma espécie de heróis. Sendo que, neste caso, a sobrevivência num acto que não atenta realmente contra a nossa vida, faça de nós uma espécie singular de heróis: os da triste figura. É estranho, as toneladas de massa instantaneamente interrompidas no seu movimento, repercutem-se em nós várias vezes, em diferentes momentos. Isto ao mesmo tempo que o cérebro dispara fazendo uma espécie de tributo ao único deus da nossa era, fazendo contas e mais contas, planos de poupança, complicados cálculos entre a reparação e a compra de um carro novo, a crédito. Não tarda telefono ao banco como quem consulta um oráculo, mas, sinais dos tempos, a resposta vem lesta e exacta, já não se vendem prognósticos na esquina das ruas, apenas certezas e culpas. Em outro lugar o choque repercute-se vezes sem conta, teologicamente fechado na sua coerência de natureza quase-morta. Nesse campo é o corpo a nossa única certeza e, instintivamente, sabemos que tudo correu bem. Mas não agora, que de todos os lados surgem vozes urgentes que pretendem saber as causas, acções e consequências do que, em verdade, não é mais que a acção de uma lei da física. Eu, de vez em quando, ainda dou por mim a ter uns tremores, como se perguntasse ao corpo se ainda permanece inteiro. Mas suponho que chega de quotidiano por um dia... aproximemo-nos dos sonhos.