sublinhar

sábado, julho 24, 2004

Lado (a lado)

Há gente que espera de olhar vazio
Na chuva, no frio, encostada ao mundo
A quem nada espanta
Nenhum gesto
Nem raiva ou protesto
Nem que o sol se vá perdendo lá ao fundo

Há restos de amor e de solidão
Na pele, no chão, na rua inquieta
Os dias são iguais já sem saudade
Nem vontade
Aprendendo a não querer mais do que o que resta

E a sonhar de olhos abertos
Nas paragens, nos desertos
A esperar de olhos fechados
Sem imagens de outros lados
A sonhar de olhos abertos
Sem viagens e regressos
Outro dia lado a lado

Há gente nas ruas que adormece
Que se esquece enquanto a noite vem
É gente que aprendeu que nada urge
Nada surgePorque os dias são viagens de ninguém

A sonhar de olhos abertos
Nas paragens, nos desertos
A esperar de olhos fechados
Sem imagens de outros lados
A sonhar de olhos abertos
Sem viagens e regressos
A esperar de olhos fechados
Outro dia lado a lado

Aprende-se a calar a dor
A tremura, o rubor
O que sobra de paixão
Aprende-se a conter o gesto
A raiva, o protesto
E há um dia em que a alma
Nos rebenta nas mãos 

Mafalda Veiga

quinta-feira, julho 15, 2004

Ouvindo Elis Regina

Gracias a la vida, que me ha dado tanto.
Me dio dos luceros, que cuando los abro,
Perfecto distingo lo negro del blanco,
Y en el alto cielo su fondo estrellado,
Y en las multitudes el hombre que yo amo.
 
Gracias a la vida, que me ha dado tanto.
Me ha dado el oído que, en todo su ancho,
Graba noche y día grillos y canarios
Martillos, turbinas, ladridos, chubascos,
Y la voz tan tierna de mi bien amado.
 
Gracias a la vida, que me ha dado tanto,
Me ha dado el sonido y el abecedario.
Con él las palabras que pienso y declaro,
"Madre,", "amigo," "hermano," y los alumbrando
La ruta del alma del que estoy amando.
 
Gracias a la vida, que me ha dado tanto.
Me ha dado la marcha de mis pies cansados.
Con ellos anduve ciudades y charcos,
Playas y desiertos, montañas y llanos,
Y la casa tuya, tu calle y tu patio.
 
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio el corazón, que agita su marco.
Cuando miro el fruto del cerebro humano,
Cuando miro al bueno tan lejos del malo.
Cuando miro el fondo de tus ojos claros.
 
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado la risa, y me ha dado el llanto.
Así yo distingo dicha de quebranto,
Los dos materiales que forman mi canto,
Y el canto de ustedes que es el mismo canto.
 
Y el canto de todos que es mi propio canto.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
 
Gracias a la vida - Violeta Parra


 

segunda-feira, julho 12, 2004

Um pouco mais de sol

Seriam talvez onze da noite quando ele sentado à frente do computador começou a escrever. O texto era no início incongruente, as frases empilhavam-se como ameaças e o conhecimento de si próprio nascia do caos, vivia nele, fugazmente iluminado. Depois, à medida que ia escrevendo, ele viu surgir subitamente o vazio de tudo e a contraditória necessidade de tudo. Nesse momento ele parou, levantou-se, e esperando uma lágrima dirigiu-se para a janela e viu a noite. Uma noite igual a todas as noites: a luz amarela dos candeeiros da rua; a lua lá no alto, um monte, uma igreja. Ele acendeu um cigarro apenas para não se sentir sozinho, e fumou enquanto pensava no dia seguinte. Depois, regressou lentamente para o lugar à frente do computador e pensou: tenho que trabalhar. Mas continuou a escrever as mesmas frases sem sentido e continuou a reconhecer-se nesse caos. Ao fim de inúmeras páginas sem sentido escreveu letra a letra a palavra:

FIM

A matéria, realidade de todas as coisas (Esboço)

Não sei por que se desenham as flores
no papel
se as flores existem
e são reais.
Não sei porque se cruzam os passos
na história
que invento para adormecer
se as pessoas existem
e são reais.
Não sei porquê longe de tudo
se o espaço existe
e é real.

domingo, julho 11, 2004

Fugindo ao infinito

Por vezes também me apetece viver fechado numa concha e desistir. Nesses momentos digo: É um absurdo desejar ser feliz. Mas se acreditamos, e eu acredito, que a felicidade existe, se já vagamente lhe tocamos, se existimos alguma vez dentro dela e sentimos o seu caloroso abraço, é um quase sacrilégio dizer agora: Não existes.
Mas onde estás, se existes? Existes na forma de um pássaro, de um rio, de uma luz, uma tonalidade, um microscópico insecto, uma árvore, uma lágrima?
É absurdo pensar que a felicidade é um bairro suburbano, uma tarde de domingo, o som de umas crianças que brincam e riem lá fora, e uma mulher que dorme calmamente ao nosso lado?
Prefiro o absurdo de Isto, do que pensar noites a fios em mundos outros, longe de Isto, longe de tudo, quase como uma fuga ao infinito.

quinta-feira, julho 08, 2004

Subterfúgio

Insiro no corpo do texto, a negrito, a palavra: morte. Acontece-me agora ir pela rua a pensar que talvez daqui a muitos anos sentir-me-ei vazio. Esqueci-me de dizer que as ruas me parecem sempre as mesmas, e são realmente as mesmas. Para quem não sabe informo que são ruas sem rio, sem mar. Depois quando paro, ou porque a luz incide num ângulo favorável, ou porque um pássaro preto para perto de mim, ou porque alguma pessoa passa e eu olho, nesses momentos…não sei realmente o que acontece nesses momentos.

Insiro no corpo do texto, sublinhada, a palavra: esperança. Aí, onde te encontras, onde existes, aí onde nada, nem eu, te alcança, existes. Eis a realidade princípio de todas as coisas: Tu existes, tu sejas quem fores, existes. Tão longe e nem por isso a vida deixa parecer, nesses momentos em que paro, o fim único de todas as coisas.

Saudades das palavras

É das palavras que sinto mais falta.
Mais do que da boca
que nunca conheci,
ou do imaginado rosto por imaginar,
é da esperança expectante
que traziam,
da forma vaga com que emergiam.

Sim, é das palavras que sinto mais falta
das tuas palavras, só das tuas.

segunda-feira, julho 05, 2004

Fragmentos

A este silêncio está subjacente um mundo de inúmeras palavras que desafiam a cada segundo a


Não encontro palavras para te dizer o que quero dizer. Não sei que reflexo me faz

Procuro nas palavras de um poeta, qualquer, a verbalização de isto. Mas o que é isto? Existe? AS minhas palavras, são imagens?, sobrepõem-se desordenadamente. Diz-se que penso mas se escrever: Que um túnel é atravessado pelo nada e eis como me sinto, sozinho: vazio. Ou: As paredes quase não existem, assim como não existe o teu corpo, quase memória de quê? Conheço-te desde aonde? Como nos encontramos antes de existirmos?
Estas palavras, diz-se: pensamentos, são toda a lucidez possível e o medo insiste em existir por aqui.

Aviso

Que não sei o que é o amor, nem onde se esconde. Que não sei amar

Tenho medo de não saber em que momento devo parar de pensar que tu existes. Ou, se tu existes, em que momento devo parar para pensar que tu existes. Talvez a vida seja apenas isto: trabalhar demasiadas horas por dia e esquecer. Mas é precisamente isto que a vida não pode ser. E talvez existas mesmo e eu sou incapaz de saber o que quer isso dizer. Espero que perdoes os meus silêncios, se existes, e mesmo que não existas espero que perdoes também.
Apetece-me tanto saber que tudo existe, que o mundo é belo, que eu sorrio. Mas onde está tudo isto, tão longe.

Gostava de poder segurar o teu corpo de encontro ao meu, há até uma memória de isso num tempo que nunca existiu. Gostava de te encontrar de novo, porque por certo nos encontramos já tantas vezes, e dizer-te quase como quem ama: voltaste. Quem diria que um milhão de tempos e a distância fariam uma distância num só tempo.

É neste preciso momento, entre milhões de anos do passado e milhares de anos de futuro que te encontro neste espaço indefinido e te digo:

sexta-feira, julho 02, 2004

Intima obsessão

“A matéria da memória é indefinida e insegura e nela, como na matéria da vida (e a vida é provavelmente apenas memória), se confundem acontecimentos e emoções, imagens e conjecturas, cuja origem nem sempre nos é dado com clareza reconhecer e cuja finalidade a maior parte das vezes nos escapa. E, no entanto, é tudo que temos, memória.”

Manuel António Pina – in “Os papéis de K.”

Imaginário

Deixa que a imagem seja: o sonho; e deixa que ela te invada e te embale durante a noite. Talvez essa imagem adquira a voz, e as palavras tantas vezes repetidas te encontrem. Deixa-te estar deitada sentindo o perfume-sonho de algures um nada. Acredita, por fim, na realidade que sou e diz-me: queres tu que eu exista?

quinta-feira, julho 01, 2004

Memória

Datas

Há dias que são, necessariamente, diferentes de todos os outros.

Ainda

Un Día

Andas por esos mundos como yo; no me digas
que no existes, existes, nos hemos de encontrar;
no nos conoceremos, disfrazados y torpes,
por los anchos caminos echaremos a andar.

No nos conoceremos, distantes uno de otro
sentirás mis suspiros y te oiré suspirar.
¿Dónde estará la boca, la boca que suspira?
Diremos, el camino volviendo a desandar.

Quizá nos encontremos frente a frente algún día,
quizás nuestros disfraces nos logremos quitar.
Y ahora me pregunto... Cuando ocurra, si ocurre,
¿Sabré yo de suspiros, sabrás tú suspirar?

Alfonsina STORNI

A propósito de nada:

Mas há a noite. O estar sozinho
E no entanto acompanhado – servo de um deus estranho
Cumprindo um ritual jamais completo

Mas há o sono. A lúcida surpresa
De um mundo imaterial e necessário
Com praias onde um corpo se desprende.

Mas há o medo. Há sobretudo o medo.
Fel, rancor, desconhecido apelo,
Suor nocturno, rápido suicídio.

Daniel Filipe, in "a invenção do amor e outros poemas"