sublinhar

sexta-feira, agosto 26, 2005

Um vapor lilás imenso e transparente












às vezes escrevo coisas assim, unicamente para ter o prazer de me reler.para reencontrar nas palavras o gosto da tua pele, saborear por instantes o sal que lambo da curva do teu peito. escrevo porque é do interior das palavras que surge todo o peso do teu corpo sobre o meu.

esta folha de papel é-me estranha repentinamente. como se não reconhecesse o gosto do teu sémen na minha língua. e as palavras que me dizes fossem, de repente, apenas palavras sem sentido sopradas na noite escura da cidade que se esquece.

Tangerina caça, ela caça. convida-me para que invada o exíguo espaço onde se deita com dois adolescentes completamente despidos. um deles olha-me como se eu fosse fogo, agarra-me mal me aproximo, deixo-me ir. mais tarde disse a Tangerina que não sei de que parte de mim me desejo despedir, sorriu.

enquanto Nervokid dormia Tangerina levantou-se, vagarosamente. como se cada manhã contivesse a sabedoria dos milagres. assim se cumpria o ritual da multiplicação dos afectos.

encontramo-nos outra vez nas ruínas de uma igreja abandonada, sem que eu consiga distinguir um do outro. pouco importa. o essencial é sentir a permanência de vossos corpos em cima da noite. e esquecer por instantes as palavras mergulhando a boca entre os vossos sexos. a escuridão quase engole os nossos corpos não fosse a luz tremeluzente de duas velas acesas em nome da ascensão.

escondemo-nos no epicentro das flores do parque sitiado, enquanto num outro lugar tu escreves. foges para que as nossas noites sejam riscadas a sangue. ao fundo vemos ainda as luzes das estrelas de néon, e desejamos, desejamos sempre mais.

ainda não chegou a primavera. tenho medo. mas sei que continuarei vivo no epicentro das flores.
Al Berto; Piotr Kowalik, Silence

quinta-feira, agosto 18, 2005

de vez em quando, um homem




Um homem caminha pela rua e uma mulher, nua, está estendida numa cama. As ideias recorrentes são luminosas como as mnhãs de março. Espreito pela janela, escondido pelo cortinado, lá fora: O homem que caminha pela rua é todos os dias um homem diferente, sempre o mesmo homem, que caminha, sozinho pela rua.

As palavras são sonhos feridos e lembro-me que aqui dentro do quarto a mulher estendida na cama tem o pensamento de muitas mulheres que de pé, caminham na rua, mas ao mesmo tempo é apenas uma mulher, sempre a mesma mulher.

As ideias recorrentes são como lugares comuns amorais.

O homem que caminha é o ser passivo e a mulher na cama o ser activo. Apenas ele caminha e ela está deitada numa cama.

Não haver mais que estas duas pessoas na ficção toda de um homem. Eis a triste notícia que lego à humanidade. O homem caminha e porventura chora a mulher deitada na cama tlavez sorria. Ou a mulher chora enquanto o homem que caminha, sozinho, sorri.

Duas pessoas são sempre o mundo todo. Ou apenas uma. Ou apenas o mundo, sem pessoas.

Em criança pensava se o mundo sem pessoas podia existir. É talvez a forma mais metafórica de matar deus, imaginar um mundo que existe apenas porque existe, sem nenhum eterno sentido impingido por pessoas com medo.

Quando era criança pensava estas coisas baixinho e dizia: quando for grande quero ser um homem que caminha, triste, sob a chuva.

Quando era criança pensava que os homens tristes eram os mais corajosos. Agora já não.

Gostava que o mundo servisse um propósito para além de existir mas um dia, enquanto comia um gelado e dizia, baixinho: amo-te, descobri que deus era uma ideia demasiado bonita para mim.

Quis o destino que crescesse o homem que caminha sentado num sofá grande, com um padrão abdominável de flores, a ler ininterruptamente. Ao mesmo tempo uma mulher deitada, nua, numa cama caminhava pela rua com uma cara triste. Chorava.

Uma vez um amigo contou-me que sonhrara com tangerina. E então eu também sonhei com casas de afectos roubados, céus laranja em praias de prédios desertos e ruas iluminadas a néon. Ou com vacas em terras da bélgica, ou com o eterno passar de pessoas na rua dos douradores.

Quisera ser rei se pudesse, para ser alguma coisa definitiva em que não acreditasse.

Uma vez, uma mulher de pé, na sala de aula, perguntou-me: que perguntas fazes com o teu silêncio? E eu quase lhe disse que a única coisa que me interessa no mundo é perguntar.

Nesses dias havia uma rapariga com cabelo azul e os com dedos injectados de heroina. A rapariga era puta na casa de banho de um imundo centro comercial. Morreu. Suicídio. Sorria muitas vezes a rapariga de cabelo azul.

Se me perguntam porquê ainda estas palavras todas, porquê este sem-fim de interrogações nebulosas, só posso dizer que desde sempre, desde o tempo em que de joelhos dobrados indagava sobre o ir e vir do homem triste que passava, insisto em perguntar porquê.

Piotr Kowalik, Soul Cages

segunda-feira, agosto 15, 2005






















do lado mais inclinado do corpo
escorrem as duas mãos mãos. dentro
no concâvo dessas mãos
dois olhos olhos. são esferas perfeitas
em rotação mansa. olhos de abraçar
mãos de beijar. e em cada polpa de cada dedo
de cada mão
segue o meu corpo no encalço do teu.

nada é visível porém. trago
este segredo guardado na boca. mas

se eu disser lugar
e se eu disser corpo mãos olhos
e deixar que tudo me escorra
do lado mais escondido da vida
vou saber de ti

minha terra







( dia quinze. campo alegre )

sexta-feira, agosto 05, 2005

rascunho


Nunca sei de onde vêem as palavras que tingem de preto a página branca. Nem sei para onde vão, que rotas tomam ao escorrer pelos meus dedos para um teclado que me espera. Os meus dedos não precisam de palavras, nem a vida, nem as horas passadas a ouvir as memórias de um homem que se diz descendente de um qualquer rei de um qualquer país esquecido. A boca abre-se porque tem sede e fome. A boca não deseja inundar-se de palavras, talvez até as rejeite se lhe permitirmos essa insubmissão. Os dedos não anseiam por este tactear uniforme em teclas brancas de caracteres pretos que reproduzem caracteres pretos em folhas brancas. A vida não precisa que escrevam a palavra vida na margem de um livro qualquer. As palavras não deixam de existir se as silenciarmos. E porque insistimos em percorrer esses ínvios caminhos. Para junto de quem? Estes caminhos de tão subtil textura levam ao esquecimento ou à memória? Das palavras sei apenas que são fiéis depositárias das células que a mim me dizem: segura-a contra ti, não a largues nunca.

eu até podia ser jornalista, não fosse a estranha mania de perguntar

E então eu fui e disse: será vossa excelência, por ventura, imbecil?

eu até podia ser terrorista, não fosse a mania de andar sempre devagar

E então eu fui trabalhar. Vesti a bata, desci à rua e pensei: aquele filho-da-puta vem atrás de mim. O que será que o filho-da-puta quer? Vou andar mais depressa a ver se desiste. Não desiste. Merda vou ser assaltado. Porra que do outro lado da rua está outro. Quando chegar à estação começo a correr, porque eu? Tenho cara de rico porra? Agora gritam, agora é que corro mesmo.

eu até podia ser terrorista, não fosse a estranha mania de fechar sempre as revistas

E então eu fui e comprei o tal livro, já que os mal-entendidos, os imbecis, o diziam proibido, provavelmente até o julgavam queimado. Vai daí e comprei o livro precisamente numa língua que não conheço, que de todo não compreendo. Agora que o tenho, o livro, e tanto quanto sei posso até ter outro livro dentro deste, disfarçado, olho para ele e não sei o que diz. Pelo menos comigo não fala, estes caracteres são particularmente longínquos. Pouso o livro, deixo-o aberto numa página à sorte, pode ser que encontrem algo.

quarta-feira, agosto 03, 2005

de dentro da minha e da tua angústia


Talvez seja esse o refúgio que procuro, talvez seja essa a secreta luz que me guia. Talvez o teu corpo, ou aquilo a que os sábios chamam a tua alma e o teu corpo, seja o secreto lugar onde existo. Ainda ontem, suponho que ontem seja uma qualquer espécie de antes, pedi que me dissesses, que me prometesses, um amanhã qualquer. E nesse dia, ontem, pensei que apenas tu me podes ser o lugar. Talvez o instante inicial seja, mais que um início, a percepção de um contrário. E eu seja, antes de mim, um pedaço teu de ti. Talvez te diga apenas: existe – eis a única realidade que quero que permaneça.

Edward Hopper, Summer Interior