sublinhar

segunda-feira, maio 30, 2005

um homem
vai no seu corpo
e subitamente
cai



casimiro de brito, livro das quedas, e ilustração de carlos marreiros para peregrinação de fernão mendes pinto, ed. expresso

segunda-feira, maio 09, 2005

(post circular n.º 4)

o homem que descobre uma mulher
será sempre o primeiro a ver a aurora.
Bruna Lombardi - Uma Mulher


primeira fala
Sou eu, a abrir a porta do quarto, e a olhar para ti deitada na cama gigante com dossel. Sou eu, que numa voz reservada chamo por ti: vem! Sou eu que, momentos depois, te dispo em frente do espelho porque gosto de te ver, e digo: gosto de te ver. E dispo-te. e digo: quero foder-te, agora. Sou eu que te agarro nos meus braços e, secretamente, sem que te diga, julgo encontrar a resolução do problema maior: porque existimos? Agora sei, amor, que é para estarmos os dois despidos em cima desta cama, para nos amarmos com esta necessidade de desaparecermos. Sou eu, quem te toca nos seios, te beija os seios. Sou eu que te agarro, sou eu que sou agarrado por ti. Sou eu, essa língua que sentes afogar-se no teu corpo, esse pénis ardente que morre em ti como se nascesse. Sou eu que afago as metáforas com que te possuo. Sou eu.


Porque me despes completamente
sem que eu nem perceba...
E quando nua
por incrível que pareça
sou mais pura...
Porque vou ao teu encontro
despojada de critérios...
liberto os mistérios
sem perder o encanto
do prazer...
Porque
quando nua
sou única
e exclusivamente
tua...
Isabel Machado - Nua

prière de toucher: segunda fala

mónica gostava que ele lhe metesse as mãos entre as pernas enquanto ainda estava vestida: os dedos a afastarem a seda das meias, a tentarem alargar o cinto de ligas, a deslizarem na pele macia das coxas, a insinuarem-se já pelo caminho dos pêlos até à humidade quente dos lábios grossos, salientes e largos da vagina, onde sentia pulsar um perturbante coração afastado.
Ou uma boca cheia de sede.

dizes-me caminho contigo nua por dentro dos olhos e eu aqui a pensar com que essência hei-de perfumar este corpo para que na tua boca só o sabor da minha te ocupe. a sede cheia da tua boca.
ou deixar que me ates a esse teu dia e caminhe contigo
assim por dentro dos teus olhos.
e onde estiveres virás sempre em mim. assim. secretamente.


deixava que as pernas subissem, os pés roçando os ombros, mas primeiro como se hesitassem, numa espécie de abraço em torno do pescoço; depois, desciam de novo até aos ombros, abertas. Oferecendo-se, enquanto Pedro começava a lamber-lhe, ao de leve, as virilhas com o seu cheiro a fruto; um pequeno suor salgado a insinuar-se por dentro da saliva, dissolvendo-se na língua. E o sussuro, o gemido, eram tão baixos que ninguém saberia determinar de qual dos dois partiam.
Assim, vestidos.

dizes-me não esperarei um só segundo para me deitar no teu corpo. tenho a urgência em forma de pele e quero colher de ti esse fruto de silêncio. dizes-me não esperarei despir o teu corpo para me deitar nele. entrarei pelos teus olhos pela tua boca e descerei aos abismos mais quentes do teu ventre. dissolvendo-me no pequeno lago salgado entre os teus lábios. e se um gemido se colar à nossa pele é porque é de sussurros que os nossos corpos se fazem
e desfazem
entre as nossas mãos. um só pedaço de ti e saberia refazer-te
toda.

desde o princípio, como gostava, logo depois de chegarem ao quarto da pensão pobre por onde ele a arrastava, ambos de respiração suspensa, subindo depressa os degraus da escada nauseabunda, penumbrosa, madeira lascada, gasta pelo tempo. Pedro, excitado, parava a meio para se esfregar nela, e Mónica quase gritava de gozo, prazer que isso despertava nela, curvada sobre o intenso cheiro almiscarado que o pescoço dele guardava, odor a cortar-lhe a respiração, entontecida e sôfrega.
"Não me quero vir já..." murmurava ele a morder-lhe os pulsos febris, breves, algemados pelos seus dedos à parede esburacada. E continuavam subindo a escada, sem fôlego, até ao último andar, patamar onde aparecia uma mulher gorda e pintada, que nas primeiras vezes lhe perguntou a idade - "por causa da polícia...", explicou; mas que nos meses seguintes se limitava a conduzi-los, sem palavras, até ao quarto que lhes alugava, quase vazio. Uma cama, uma cadeira, um candeeiro e um espelho chegavam-lhes durante as horas que ali passavam, nas quais só queriam beber-se, devorar-se um ao outro, misturando os sucos, o cuspo, o prazer, partilhando a posse.
Às vezes Mónica gritava.

dizes-me quero comer de ti a carne macia e rosada entre as tuas coxas. gritar-te por dentro que és minha e
sobre o cheiro intenso que te deixo
imprimir-te as minhas mãos e o meu sexo ardente
como dentes. morder-te a nuca e entrar em ti com a fúria toda de homem. não.
não chega devorar-te o corpo. é nos teus seios
ou entre as tuas pernas que quero todo o meu corpo.

pedro punha-lhe então sobre a boca a palma da mão, que ela mordia, e explodia dentro dela, o corpo muito magro erguendo-se, febril, enquanto a via continuar ainda e ainda revolvendo-se, os dedos excitando-os dentro de si, enquanto se ia masturbando ao mesmo tempo.

dizes-me não sei que fazer a este desejo intenso a este cheiro a mim e a ti
que se cola aos meus dias e
me transporta para aí
onde estás e me reténs. eu sei os teus dedos de cor
e com eles viajo por dentro de ti. cada um prolonga uma parte
do meu corpo. a boca de língua que te penetra
as mãos que te puxam e seguram entre as minhas coxas
e um meu sexo febril que te procura. não há lugar nenhum onde eu
saiba mais de mim
que em ti. caminhar contigo nua
assim
por dentro dos olhos é morrer a cada espasmo. e
reviver a cada vez que te dás. que me dou.

a terra é uma cama gigante. em cada rua eu te possuo com
um nome diferente. em cada rosto eu te olho. e se não chegasse
para enlouquecer de desejo
olho o meu corpo e nada nele nega a tua presença.

o dia a noite e
o céu esse dossel que nos cobre e esconde
dos olhares dos outros servem-nos de quarto. deito-me em ti em cada hora
e em cada vez te inundo do meu sémen. emprenho-te com este segredo
e já és minha mesmo sem o saberes.

volto a ti. nua. deitada. para mim. só para mim.


( pausa. digo-te de mim: nua. deitada. para ti. só para ti. desvelo
entre as coxas o segredo do teu corpo - em cada lugar do meu corpo
a tua língua deixou um rasto. e é o teu cheiro que cheira
na minha pele. e o teu sémen
que me nasce
lenta
lentamente. agora. aqui. enquanto escrevo.)

espasmo: que fazer com estas mãos e estes olhos
que te esperam. pausa: faremos amor como quem não nasceu
para outra vida.


Wyeth; segunda voz: maria teresa horta- "Mónica", in intimidades e blimunda

(post circular n.º 3)

Tupi, or not tupi that is the question.
Oswald de Andrade - Manifesto Antropofágico

Eat

Ergo-me pederasta apupado de imbecis,
divinizo-Me Meretriz, ex-libris do Pecado,
e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!
Satanizo-me Tara na Vara de Moisés!
O castigo das serpentes é-me riso nos dentes,
Inferno a arder o Meu cantar! (...)
Tu, que te dizes Homem! (...)
Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos,
vai inchando a tua ambição-toiro
'té que a barriga te rebente rã. (...)
Hei-de, entretanto, gastar a garganta
a insultar-te, ó besta! (...)
Tu chegas sempre primeiro...
Eu volto sempre amanhã...
Agora vou esperar que morras. (...)
Ah! Que eu sinto claramente que nasci
de uma praga de ciúmes.
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a alma dos Bórgias a penar!
Almada - A Cena do Ódio (Excerto)

Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sing a song.Sin


I philosophy
Possibly speak tongues
Beat drum, Abyssinian, street Baptist
Rap this in fine linen, from the beginning
My practice extending across the atlas
I begat this
Flipping in the ghetto on a dirty mattress
You can't match this rapper slash actress
More powerful than two Cleopatras
Bomb graffiti on the tomb of Nefertiti
MCs ain't ready to take it to the Serengeti
My rhymes is heavy like the mind of sister Betty (Betty Shabazz!)
L-Boogie spars with stars and constellations
Then came down for a little conversation
Adjacent to the king, fear no human being
Roll with cherubims to Nassau Coliseum
Now hear this mixture, where Hip Hop meets scripture
Develop a negative into a positive picture
Lauryn Hill and The Fugees - Everything is Everything

Everything


Helio Tarallo - Tropicália; autor desconhecido (retirado de http://www.zivil.de/)

domingo, maio 08, 2005

(post circular n.º 2)

o amor pode nascer de uma única metáfora.
kundera - a insustentável leveza do ser

Madrugaremos nas vinhas
veremos se floriu a vide
a cepa se brotou
se as romãs em flor
ali te hei-de dar a Iluminação
onde os sábios os símbolos.
Ou as mandrágoras dão o seu perfume
e sobre as nossas portas os frutos
novos e os frutos velhos guardei eu
meu amado
para ti.
tradução de Fiama Hasse Pais Brandão - Cântico Maior


Chamo para o meu corpo o mar das memórias ardentes. As mil e uma palavras trocadas no silêncio da tinta negra espalhada sobre páginas de papel pardo. Ouve-me, antes que desistas, ouve o meu corpo sufocando na tua ausência. Peço o socorro das metáforas para anestesiar a dor do vazio. Ou antes, convoco-te para luxuriantes noites de verão, na nossa cama, mas faço-o à luz das palavras-bytes tão comuns à nossa vivência. Vamos. Vens?


Os silêncios da fala
São tantos
os silêncios da fala

De sede
De saliva
De suor

Silêncios de silex
no corpo do silêncio.

Silêncios de vento
de mar
e de torpor

De amor

Depois, há as jarras
com rosas de silêncio

Os gemidos
nas camas

As ancas
O sabor

O silêncio que posto
em cima do silêncio
usurpa do silêncio o seu magro labor.
Maria Teresa Horta

Munch - Madonna; Arnold Genthe - Garbo

(post circular n.º 1)

…amar os livros com uma profundeza que supera a falta
de intimidade que ainda hoje tenho com eles.
Caetano – Verdade Tropical
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.
João Cabral de Melo Neto – O Relógio


A monocórdica sapiência das flores
Antes, ou depois, ou em vez de,
um aglomerado metafísico de
vidrinhos improvisados de
uma janela partida, caída, havia horas, na rua.

A voz sonolenta do homem que
despertava àquela hora que
representava a aurora que
lhe era possível, naqueles dias terríveis.

Antes, ou depois, ou em vez de,
uma torrada queimada de
pão integral esquecido de
quentes dias anteriores a tudo.

O corpo sonolento do homem que
vagueava pela casa que
outrora se enchera de alegria que
nascia de um sorriso de mulher.



imagina o meu corpo deitado sobre a cama. podes tocar-me. toca-me.

antes que o tempo acabe ou a intimidade se intimide,

despe-te tu também,

e deixa-te cair sobre mim.

o mundo, lúcido e frio, desaparece sob a nossa leveza.

esquece-o.

Dalí – A Persistência da Memória; William Newenham Montague Orpen – Nude Study

apesar de vocês


Mesmo com toda a fama, com toda a brahma
Com toda a cama, com toda a lama
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa chama
Mesmo com todo o emblema, todo o problema
Todo o sistema, todo Ipanema
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa gema
Mesmo com o nada feito, com a sala escura
Com um nó no peito, com a cara dura
Não tem mais jeito, a gente não tem cura
Mesmo com o todavia, com todo dia
Com todo ia, todo não ia
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa guia
Mesmo com todo rock, com todo pop
Com todo estoque, com todo Ibope
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando esse toque
Mesmo com toda sanha, toda façanha
Toda picanha, toda campanha
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa manha
Mesmo com toda estima, com toda esgrima
Com todo clima, com tudo em cima
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa rima
Mesmo com toda cédula, com toda célula
Com toda súmula, com toda sílaba
A gente vai levando, a gente vai tocando, a gente vai tomando

Vai Levando - Chico Buarque

quinta-feira, maio 05, 2005

flutuar

antes ou depois do tempo,
uma palavra:
silêncio.

quarta-feira, maio 04, 2005

um post que fugiu a si próprio

Havia outras tardes. Ficou desse tempo uma ideia de que as tardes se multiplicavam e, como a memória é estranha, existiam apenas no espaço luminoso da primavera e do verão. Aliás, volto as páginas deste blog, e vejo que este despontar do calor me leva de imediato ao passado, a essas luminosas tardes. Primeiro foram as tardes da infância que recordo demasiado extensas, demasiado ilimitadas para uma criança que brinca sozinha. Não que eu brincasse sempre sozinho, acho que nem a maior parte das vezes, mas gostava de estar sozinho. Era precisamente na solidão que a imaginação quebrava as amarras e me deixava ir para grandes estádios de futebol, para países distantes, para outros planetas. Dessas tardes ficaram duas grandes paixões-eternas: o futebol e o ciclismo. O futebol primeiro, entre os bonecos do futebol de mesa, os cromos, a tv e o estádio municipal (agora com o habitual nome de D. Afonso Henriques). Esta paixão continua com a mesma intensidade, cheia de amores e de desamores profundos. Por exemplo, ontem fiquei contente com a vitória do liverpool apenas porque desde que saiu do benfica numa tentativa de fazer um golpe de estado no Sporting (e depois foi parar ao fcp) eu antipatizo profundamente com a personagem, mas também porque já sendo provinciano não preciso de imitar o provincianismo-nacionalista dos outros que o olham como a ponta da lança do prestigio nacional nesse ignoto estrangeiro. A outra paixão é o ciclismo, paixão algo estranha para quem nunca soube andar de bicicleta, mas ainda assim se encanta com a dureza do desporto, a solidão de um corredor isolado, a cadência de um pelotão compacto de uma grande prova. Esta paixão nasceu das tardes de infância em redor da volta mas só prevaleceu nas tardes ociosas da universidade a ver o tour. A seguir vieram outras tardes, mas esta já não tinham o sabor das anteriores, o seu tempo parecia o tempo certo, duravam na exacta medida que tinham que durar. São as tardes da sensualidade. Delas recordo tudo, de uma forma tão exacta, tão profunda, que as sei inscritas em quase tudo que sou agora. Mas da descoberta se passa depressa à euforia de ter descoberto, e aí o tempo ganha uma velocidade distinta, acelera. Nesse outro tempo as tardes passaram a ser pequenas. Havia a necessidade de fazer mais coisas do que as tardes o permitiam. Desse tempo ficaram inúmeras descobertas: o tabaco, a música, os livros, o álcool, a liberdade, o sexo (não por oposto, mas também não exactamente a sensualidade anterior), a mentira com objectivo, o desalento, a esperança, quase tudo suponho. E a imagem de Michael Jordan voando. Anos mais tarde, deprimido, e vogando à sorte pelas ruas de uma outra cidade, fui despertado por aquela música, acho que do seal, i believe I can fly (que se bem me lembro faz parte da banda sonoroa de um filme com ele) e que logo me lembrou esse poder sobre-humano do Jordan. Muitas vezes me passa pela cabeça, ao ver aqueles filmes sobre os anos trinta em nova iorque, que a minha geração também foi afortunada por poder ver, em directo, do outro lado de um enorme oceano, esse voo livre, essa precisão que tinha algo de divino. Paradoxalmente a única coisa que me incomoda no Jordam é a sua perfeição, incomodo que de certo modo foi esbatido pela sua passagem pelo bassebol. Sempre gostei de estrelas temperamentais, ao estilo de Pedro Barbosa, Ian Ulrich ou, o mais excelente dos exemplos, esse outro mito da perfeição: Jardel. Na sua primeira época no Sporting aprendi a olhar para ele como olhava para o Jordam dos Bulls. Sabia, até naquele jogo contra o benfica, que o Jardel, como a Juve resumiu, resolvia. Mas dado o meu gosto pelo temperamentalismo dos artistas, vivi a época seguinte, como aliás todos nós, pendurado à sombra daquela estranha novela. Depois, apesar do encantamento dos pés do menino desisti um pouco do futebol. No tour, Armstrong, que dada a rivalidade com Ulrich eu cheguei a detestar, ganhava tão facilmente que voltei a ver nele o Jordan, desta vez com a mesma precisão, profissionalismo e capacidade fora de série. Isto parecem memórias desportivas, eu que queria escrever sobre as tardes parei escrevi sobre o desporto. E ainda falta tanta gente que podia ficar toda a tarde nisto. Por exemplo: Redondo. Para quem não conheceu, há pessoas para tudo, era uma espécie de deus do meio campo. Ainda há poucos meses, liguei a tv enquanto estava a dar um jogo de veteranos e de uma imagem geral do campo identifiquei-o de imediato. Claro que parei para ver. Redondo. Não sei, se calhar sou das poucas pessoas do mundo que não consegue dizer o nome sem cair num mar de recordações. Redondo. Parece-me enorme, talvez idêntico a algumas pessoas quando dizem: eusébio. Eu digo Redondo, e logo a sua altivez, o seu estilo impecável, o seu porte (obrigado Gabriel), me surgem da memória. Ainda ontem, enquanto lia a verdade tropical do Caetano, e a partir de sugestões dele ali feitas, pensei que se uma equipa tivesse reunido Nesta, Cannavaro e Redondo muitos homens seriam tentados a rever os seus comportamentos sexuais. Porque, quem viu, e ainda os vê, jogar não pode deixar de admirar o quanto qualquer um deles se aproxima de um dançarino profissional. Claro que admirável em qualquer um deles é, mais linguagem cabalística, o seu conhecimento táctico, que os transformava (transforma) em exemplos de jogadores perfeitos. Mas não são apenas um maniche, ou um costinha, ou, digo isto com alguma tristeza, um Ricardo Carvalho porque eles têm a distinção, lá está: o porte, que os eleva acima do comum dos mortais jogadores de bola. Como disse: Redondo era um deus; como Maradona era um deus; como Jordam era um deus; e o menino é um deus. Eis um texto que não pretende nada mas que me deu prazer a escrever, menos pelo que de facto escrevi do que pelas memórias que vivi enquanto escrevia. Porra, lembram-se daquele dia em que o Nuno Gomes marcou aquele golo contra a frança no europeu de inglaterra? De onde veio aquele golo Nuno? – sempre me perguntei isso. De onde?

terça-feira, maio 03, 2005

um dia morreremos todos outra vez, nas páginas de um livro

Advertência: este post é, como facilmente confirmam, demasiado longo e antes que o leiam aviso que é, também, demasiado pessoal para, porventura, interessar a alguém. Mas se, por qualquer motivo que, desde já, aviso que não percebo, lerem o post até ao fim, não pensem que tudo que nele se conta, vagamente ou com insistência, é, ou foi, verdade, naquele sentido mais prático habitualmente dado a essa palavra.

[um pensamento em vozescrita alta]
Não sei a que propósito me surgiram hoje estas memórias. Estava sentado no mesmo café onde em estado de semi-embriaguez inventei a história do meu primeiro conto, a partir de um quadro com pretensões moderno mas, no fundo, bastante ridículo que lá se encontrava exposto. Não que isso tenha importância, as memórias fugiram para a música, para o tempo em que aprendia a tocar guitarra. Comecei pela aprendizagem clássica, lenta, aborrecida, interrompida a trechos por magníficos solos do professor, enquanto nós aprendíamos a ler na pauta e tocávamos peças de um simplicidade entediante. Um dia o professor foi de uma agressividade despropositada para um colega, nosso amigo, e decidimos em conjunto migrar para aulas de guitarra eléctrica, sem pauta, sem pretensões. Por essa altura estávamos satisfeitos com três acordes, tudo muito neo-punk, e eu, principalmente eu, fascinado pelas experiências nada melódicas do fee-back, dos instrumentos improvisados, até, confesso com a vergonha de nunca ter sido afinado, da voz. A música ainda tinha a ver com libertação, com clubes manhosos, com um tempo de transposição provinciana de uma decadência urbana. Tudo era desculpa para bebermos de borla. Um sintoma de que beber era mais importante do que a música foi o nunca termos discutido por causa do excesso de blues, ou de experiências instrumentais, e que todas as deserções tenham ocorrido pelas diferenças de perspectiva em relação á utilização de drogas duras e químicas. Vem desse tempo a afirmação do meu individualismo, simplesmente não tinha paciência para a maior parte das ideias dos outros, achava as letras demasiado simplistas e só cheguei a tocar (esporadicamente e sempre pouco mais que três acordes) numa banda porque quem fazia a música e escrevia as letras era um amigo meu que escrevia muitíssimo bem. Por outro lado, mal tive na mão uma guitarra comecei a fazer gravações caseiras em que eu decidia e fazia tudo. Divertia-me imenso, embora o resultado fosse tudo menos prometedor. Um dia um amigo a quem tinha emprestado uma dessas gravações levou-a num daqueles indescritíveis passeios da escola (felizmente não andávamos na mesma escola) e passou-a para todos. Foi assim que um grupo de umas quarenta pessoas pode ouvir uma gravação minha da música youth against fascism dos sonic youth, que consistia na sobreposição da letra, cantada no tom mais esganiçado de que a minha voz foi capaz, a um conjunto de ruídos que iam desde o aspirador a uma máquina de picar carne, misturados com uma melodia simples, ao fundo, proveniente de uma outra gravação minha tocada ao mesmo tempo num rádio que a emitia com um ruído característico. No global o efeito era entre o cómico e o péssimo, mas tinha um ar de desespero que não só eu não sentia como nunca me tinha ocorrido até ouvir a gravação. Esse sucesso, porque aparentemente houve pessoas que gostaram, não foi propriamente duradouro. Sempre achei, desde a altura, que imbuída na ideia de fazer música havia uma nostalgia da preguiça. Logo, num foram avante as mil e uma ideias que nos passavam pela cabeça. Os ensaios, quando os havia, consistiam em tocar algumas coisas até ao momento em que a bebida nos impedia de continuar a segurar os instrumentos sem correr o risco de os partir. Depois havia as letras nunca cantadas, no fundo colagens sobre músicas e temas de bandas conhecidas e que apesar disso eram elogiadas até por pessoas que eu não conhecia. Para mim era sempre tão evidente a cópia que comecei a descrer dos elogios, e a perceber a tendência para gostarmos sempre mais daquilo que conhecemos. Provavelmente essa foi a fonte de uma tentativa vã de subverter, que incidia em letras incompreensíveis e numa série de histórias curtas e anódinas com finais surpreendentes. Tal como esse conto de que falava ao princípio, que era uma história parva de uma noite, uma festa, uma rapariga e no final o personagem masculino matava, na cama, a mulher com um tiro apenas porque quando abriu a gaveta em que esperava encontrar uma caixa de preservativos encontrou uma pistola. Era ridículo, mas obrigava ao exercício sem préstimo de pensar o que se queria dizer com aquilo. Havia mais dentro do mesmo género: um quotidiano cheio de referências fáceis de entender e um final com pretensões a agressão física ao leitor. Mas de regresso à música: Acabou quando por necessidades financeiras (dinheiro para umas férias não sei onde) vendi a guitarra. Coincidiu com o período em que parte do grupo começava a pensar mais a sério na universidade (em ir para a universidade) e os outros começavam a usar heroína a um ritmo assustadoramente assíduo. Esse, as drogas, tinham sido sempre o ponto de discórdia, de longos tempos sem nos vermos, no fundo, o motivo pelo qual nunca levamos muito a sério o que fazíamos. Para mim, e para outros, era evidente que sempre que as drogas começavam a circular nós nos íamos afastando. No espirito da época fazíamos isso sem qualquer pretensão a moralizar, simplesmente não queríamos e íamos embora. Desde essa altura até agora (e só passaram alguns anos que parecem mesmo muitos) desaprendi a ler música numa pauta, tornei-me incapaz de tocar guitarra e cantar dentro de um autocarro (como fizemos várias vezes) e passei a descrer da facilidade de usar o que existe, fingindo inovar, para obter elogios fáceis. Ontem lia que na arte todos os movimentos que apresentam um corte com o passado estão fortemente imbuídos desse mesmo passado com que pretendem cortar, que são precisamente esses, e não os que se mantém atávicos à tradição, que melhor perpetuam o que existiu antes. Lia isto a propósito do tropicalismo (escrito por caetano) mas é uma ideia que se adapta a tudo. E, hoje, pensava que essa vontade de negar o passado (cheia de amor e conhecimento por ele) é tanto mais conseguida quanto maior for a negação. Um paradoxo é o que é. Mas que essa negação que comporta riscos é, ainda assim, tudo que existe.