fragmentos de cada um no outro
Há um corpo de mulher deitado na cama e muitas vezes me pergunto: e onde está ela agora? Custa-me, é verdade, chego a sentir um mal estar físico, por a ver ali deitada, despida, respirando devagar. É estranho que me custe uma mulher que dorme ali, ao meu lado, deitada na cama. É manhã, lá fora, o sol ergue-se directamente das colinas e expande agora a sua luz pela terra. Alguns pássaros rompem o silêncio da aurora. Um carro passa na rua trazendo a música de outras noites. Renovo o olhar. De novo aquele corpo quente, sensível, ao meu lado. Toco-lhe. Há um segredo antigo guardado nesse primeiro toque. Por um lado é leve, o suficiente para permitir pensar que não a quero acordar, por outro lado, nele reside ainda o ancestral medo do sono, da ténue morte que nos alcança todas as noites, até ao dia em que se torna definitiva. Vem daí o meu mal estar, preciso que ela acorde, se vire para mim e diga: bom dia!, ou então que diga: não sejas parvo, deixa-me dormir. Se sussurrar isto sem convicção é certo que a vou puxar para os meus braços e faremos amor, se murmurar apenas bom dia, irei beijá-la, sussurrar-lhe ao ouvido: amo-te, e, então, faremos amor. Se um dia lhe contar: penetro-te como quem esconjura a morte, ela irá compreender. Por enquanto dorme, ainda, indiferente àquele primeiro toque. Olho-a ainda mais lentamente. há qualquer coisa de sagrado neste acordar, neste corpo vivo, vibrante, e nesta alma dormente. Há qualquer coisa de sagrado nesta vontade de tocar. Aproximo a boca das suas costas, molho os lábios com a língua e beijo-a, levemente. Agora rodopia na minha direcção, sorri e diz: deixa-me dormir. Então agarro-a, dispo- a da pouca roupa que insiste em envergar durante a noite e fazemos amor. Agora há uma mulher deitada ao meu lado, acordada, fitando-me como se me visse pela primeira vez e eu retribuo com a mesma inocência. Renascemos. Talvez agora me levante, caminhe devagar para a mesa ao pé da porta e beba um copo de água fresca que lá coloquei durante a noite. Agora não importa que durmas mais um pouco, ou que o teu corpo me pareça, no sono, ausente de ti. Porque agora guardamos, misturados, fragmentos de cada um no outro.
Sleeping Woman, 1934 - Tamara DeLempicka