sublinhar

segunda-feira, junho 27, 2005

fragmentos de cada um no outro


Há um corpo de mulher deitado na cama e muitas vezes me pergunto: e onde está ela agora? Custa-me, é verdade, chego a sentir um mal estar físico, por a ver ali deitada, despida, respirando devagar. É estranho que me custe uma mulher que dorme ali, ao meu lado, deitada na cama. É manhã, lá fora, o sol ergue-se directamente das colinas e expande agora a sua luz pela terra. Alguns pássaros rompem o silêncio da aurora. Um carro passa na rua trazendo a música de outras noites. Renovo o olhar. De novo aquele corpo quente, sensível, ao meu lado. Toco-lhe. Há um segredo antigo guardado nesse primeiro toque. Por um lado é leve, o suficiente para permitir pensar que não a quero acordar, por outro lado, nele reside ainda o ancestral medo do sono, da ténue morte que nos alcança todas as noites, até ao dia em que se torna definitiva. Vem daí o meu mal estar, preciso que ela acorde, se vire para mim e diga: bom dia!, ou então que diga: não sejas parvo, deixa-me dormir. Se sussurrar isto sem convicção é certo que a vou puxar para os meus braços e faremos amor, se murmurar apenas bom dia, irei beijá-la, sussurrar-lhe ao ouvido: amo-te, e, então, faremos amor. Se um dia lhe contar: penetro-te como quem esconjura a morte, ela irá compreender. Por enquanto dorme, ainda, indiferente àquele primeiro toque. Olho-a ainda mais lentamente. há qualquer coisa de sagrado neste acordar, neste corpo vivo, vibrante, e nesta alma dormente. Há qualquer coisa de sagrado nesta vontade de tocar. Aproximo a boca das suas costas, molho os lábios com a língua e beijo-a, levemente. Agora rodopia na minha direcção, sorri e diz: deixa-me dormir. Então agarro-a, dispo- a da pouca roupa que insiste em envergar durante a noite e fazemos amor. Agora há uma mulher deitada ao meu lado, acordada, fitando-me como se me visse pela primeira vez e eu retribuo com a mesma inocência. Renascemos. Talvez agora me levante, caminhe devagar para a mesa ao pé da porta e beba um copo de água fresca que lá coloquei durante a noite. Agora não importa que durmas mais um pouco, ou que o teu corpo me pareça, no sono, ausente de ti. Porque agora guardamos, misturados, fragmentos de cada um no outro.

Sleeping Woman, 1934 - Tamara DeLempicka

quarta-feira, junho 22, 2005

em virtude de


Escrevo para impedir que os dias desapareçam. Em palavras, em menos que palavras, em vestígios dispersos de factos isolados. Escrevo porque quero tecer este labirinto de razão. As palavras são a memória disfarçada de esquecimento.

Por exemplo:

Um rio de águas vermelhas corre em direcção a noroeste no dia vinte e um de Junho do ano da graça de dois mil e cinco depois do salvador.

Escrevo para que os dias permaneçam inexactos no tempo. Em frases, entrecortadas de vestígios, memória. Escrevo para que o novelo se desenrole sem nexo por todas as divisões da casa. As casas são palavras e são também o mundo.

Por exemplo:

Comi uma manga sentado no quintal de uma pequena casa na bahia no dia vinte e um de Junho de mil oitocentos e cinco.

Escrevo para que a memória se desconserte. Em conceitos exactos, no lugar da preservação da vida. Escrevo para que levante a neblina que cerca os lugares onde vivi. A memória existe.

Por exemplo:

O meu tio sobe a rua de Camões, encontra um senhor que lhe diz: então, sempre me entrega aquilo amanhã? Isto acontece com ele no dia sete de Maio de mil novecentos e oitenta e nove e comigo no dia sete de Junho de dois mil e cinco. E o homem que pergunta é o mesmo, mas o meu tio está morto. E ainda hoje existe a palavra: tio, que é ele.

A memória existe realmente, como uma ilusão.

Por exemplo:


...

terça-feira, junho 21, 2005

um post para entreter a insónia

Por vezes regresso ao tempo em que os textos são apenas uma forma de entreter o tempo, de o deixar passar entre os dedos para longe. É noite, é sempre assim: é noite, está calor e as palavras constituem o único porto de abrigo, ou antes, um farol que nos permite acreditar que o barco naufragado ruma a qualquer lado.

A imprescindível informação horária: são uma e oito a.m..

Se quiserem saber (é estranho imaginar alguém a querer saber) a noite enche-se de desenhos na pedra, lentos e antiquíssimos golpes de machado na pedra.


Se um dia fosse a caminhar pelo campo talvez chamasse alguém para comigo erguer um menir, ao lugar iria chamar: O Lugar.

Como justificação diria que nunca ouvi falar de Alfredo Bettencourt, nem de séculos, nem de anos. Apenas que a lua visita a terra à noite e, se o soubesse articular em palavras diria ainda: não precisam de inventar a inocência. Parem, olhem, divirtam-se. Considero injustificado que se mantenham conceitos inúteis apenas por superstição.

Deixem.

Alguém um dia, há sempre alguém um dia, por isso não temos o que recear. Alguém, um dia, virá… não me apetece contar a história, detesto catástrofes e paraísos.

Apetece-me um dia, um dia qualquer, tanto faz, vá lá, não sou exigente, sou existente, é só. Apetece-me um dia qualquer.

Leio acerca um romance sobre as banalidades de uma praça qualquer, não me lembro do autor, S. Suplice, a praça. Nem sei se acertei a ortografia. Que me importa a ortografia, são uma hora e dezanove minutos a eme. I’am, what I’am. The way I walk…

É triste quando ouvimos no metro um homem tocar My Way, é triste quando cantamos a letra e, sei lá, até temos medo de acertar.

Se houvesse um homem, de pé, no topo da maior montanha do mundo, ele estaria mais alto que todos os outros homens, isto se não houvessem astronautas deitados em estações espaciais.

É triste não poder mais caminhar até ao sítio mais alto.

Ainda há caminhos, até existem percursos cravados bem firmes no solo, assim podemos caminhar do ponto A ao ponto B pelo percurso mais curto: a desmemoria.

Se eu pudesse, sei lá, erguer um menir, e chamar ao lugar, precisamente: O Lugar.
Acreditem, seria feliz.

terça-feira, junho 14, 2005

de um corpo in(di)visível

Qualquer caminho
pode ser a distância
entre tu e eu


Qualquer distância
entre tu e eu
é a única e magnífica existência
do nosso amor que se devora sorrindo


Mário Henrique Leiria

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fumo mais um cigarro para afastar
esta embriaguez de pensamentos-
há tantas horas entre mim e ti
que nem sei dizer delas-
a pele da minha pele é já outra
o corpo do meu corpo ganhou marcas
invisiveis. só eu sei
o que carrego quando me carrego:
o segredo mais incrível esconde-se
aí no pulsar acelerado do meu coração
bem junto à veia que me purifica e alimenta.

não sei como falar de ti sem falar de partidas. de chegadas. de viagens por dentro de mim. de viagens por dentro de ti. e de lugares
quase impossíveis que resgatamos a mapas imaginários.

o amor pode ser um bilhete de ida. sem volta.
elle se donne. a lui. ele dá-se também. à velocidade do pensamento. não há nada que me impeça de estar aí. já.

e entre uma mão e outra
sobra apenas esta distância invisível. o nosso é um só corpo. indivisível: o meu no teu no meu no teu. onde começa o meu. onde acaba o teu. nem sei se é necessário sabê-lo. ou se é apenas indizível. talvez tenhamos que inventar um nome. um outro nome para este amor.

lá fora alguém fala de lugares longe longe.
beijos no cais. recomendações. malas.
malas. malas. a carga toda da vida em malas. que nos puxa para o chão.

transporto comigo apenas o que me serve.
para estar contigo basto eu. para estares comigo bastas tu. assim mesmo nus. a alma como tecto. quente regaço. casa.

casa. corpo. indivisível. invisível. indizível. casacorpocasacorpo.





e ainda outro corpo: corpovisivel.blogspot.com

segunda-feira, junho 13, 2005

um encontro é sempre um início de universo

* e sentir na imperfeição a perfeita coluna de cristal
do puro entendimento entre o pudor e a vibração de um segredo
queremos ser mais para não sermos o que não somos e o que somos
e por isso a palavra adianta-se na sua trémula e cintilante audácia
que se eleva no cimo do encontro em transparências novas *





Munch


agora que o dia acaba eu podia escrever para ti sobre essas horas
que por mim passaram ou sobre os rumores que me envolveram
e os outros que nascem crescem e me morrem à boca do corpo
e que por uma razão que nem sei explicar
por aqui ficam
colados às paredes do meu quarto
dobrados na roupa que acabei de despir
ou ecoando ecoando por dentro dos meus olhos. há uma espécie
de luz que se vai esvaindo e eu
sinto-me invadida por uma serenidade que só me acontece
quando estou assim
pensando que à boca do corpo
todas as palavras que quero dizer-te são pouco
muito pouco
e se as dissolver em saliva e as deixar escorregar
no teu corpo
então será mais fácil

beijos te darei então
embrulhados nessas metáforas aquelas que dizem
sussurrando
amo-te amo-te
como se fosses todo o céu que hoje se estreia na minha noite


beijos te darei então
para que em cada um possas dizer-nos com uma linguagem
toda tua toda minha
os nomes chupados por entre a língua
os nomes soprados por entre os dentes
os nomes que sobram por entre os abraços
e os que deslizam do meu para o teu para o meu olhar

depois podemos até cair no silêncio
dos amantes e

dizeres de ti dizendo de mim
dizer de mim dizendo de ti
se houver ainda algum amor por fazer





antónio ramos rosa e maria teresa dias furtado, o alvor do mundo



nocturno

stalker3-2


Suponho que dormes. Porque não? Afinal é noite lá fora, e os espaços abrigados entre paredes brancas permitem essa cumplicidade com os nossos medos que nos permite dormir.

Suponho que dormes. Confirmo essa ideia pelo silêncio do aparelho electrónico que agora tenho em cima de mesa. Estranho que um telefone possa ser a tua voz.

Suponho que dormes. Que te deixaste cair algures entre a angústia de eu não existir de verdade. Por vezes penso que a finalidade de tudo é a metáfora. E que a minha própria vida é uma metáfora.

Eu não existo, dizem-te os teus braços deitados na cama agora, enquanto dormes eles dizem: ele não existe. E nos teus sonhos eu sou apenas uma árvore verde cujos ramos abanam brandamente à passagem de um vento de norte.

Acorda.

De dentro de nós, nestas horas, cresce o silêncio que ouvirás um dia numa avenida prenhe de trânsito na hora de ponta.

Acorda.

Quero surpreender a noite no preciso momento em que acordas para te dizer: Amo-te.

Acorda.

O silêncio… por vezes, as palavras revolteiam em nós, procurando uma saída para que o mundo se esqueça que existe. Ou ficamos assim, calados. A noite inspira esta desconfiança entre as palavras.

Adormeço.

Agora é noite e o som da relva impõe-se sobre a natureza rude das coisas.

Existem dois corpos e duas camas.

Um corpo e uma cama.

Acordas.

Ouço-te dizer: Amo-te.

domingo, junho 12, 2005

a palavra caminha para o silêncio


Ouça-se com atenção o que não sou capaz de
dizer, o intervalo entre dois ruídos.
Fragmentos, pois. Para deixar ao silêncio
(e aos leitores do silêncio)
o espaço que lhes é grato.



Untitled, 1996, Sharon Lockhart * excerto de A Palavra Caminha Para o Silêncio de António Ramos Rosa e Casimiro de Brito in Duas Águas, Um Rio

por vezes vejo o céu e tenho dúvidas


A persistência com que emendo as flores do meu jardim, como um jardineiro perfeccionista em constante luta com a natureza, deixa-me constrangido. Na verdade, faz-me falta que as montanhas não sejam rectangulares como as torres de vidros das cidades. Alcança-me uma sensação antiga de não presença, tenho medo de não distinguir a regularidade das coisas.

Se eu fosse pelo bosque e encontrasse uma placa a dizer: Rua Dr. Alfredo Bettencourt (Médico do Séc. XX), talvez soubesse habitar essa morada das bruxas e reconhecesse o perfume do jasmim.


Landscape at Céret, summer 1911, Picasso

domingo, junho 05, 2005

a memória

"sim, as recordações estão cheias de cabeças a pensar por nós."


in O Evangelho das Rãs, Luísa Monteiro e Memory, Hermann Lederle

palavras e flores


Antes que te possa falar com as palavras de terra, as mesmas com que me dizes amo-te, talvez seja prudente aprender com as mãos os nomes das plantas que me chamam dos montes.

Por vezes penso que será demasiado tarde, ou que uma nuvem de insectos disfarçada de piano de cauda se abaterá sobre mim, num qualquer caminho do monte disfarçado de avenida movimentada por ondulantes seres metálicos de futuras degenerescências.

São esses medos que povoam os sonhos dos que não sonham. O tempo disfarçado de informação útil, a ser usada de acordo com as conveniências.

Se me fecho no meu quarto, dormente entre os head-phones com música alta, logo uma voz, ou uma luz, me fazem sentir a urgência de fazer alguma coisa, seja o que for.

Talvez, e em mim poucas são as certezas, seja esse fulgor dos horários dos outros que insistentemente cumpri, que fazem com que hoje, nos intervalos meus do mundo, me deixe enrolar por uma sonolência breve, por um estupor cheio de prazer recalcado.

Hoje, ao contrário, acordei com a vontade de te oferecer uma flor cujo o nome me esqueci de aprender. Esse gesto haveria de me levar um dia a uma terra cheia de mar e me fazer nadar entre as águas verdes como as árvores. Um reflexo de um mundo em outro mundo.

Esse seria o dia da revelação. Na água e no teu corpo.

Que esse dia aconteça apenas depende de um gesto: eu estender um braço e da minha mão desabrochar uma flor. Para ti.

É isso que faço agora, uma flor, a palavra: FLOR.

Foto de Silvio Tucci Júnior, Lílio