Nós, os seres humanos que vivemos em casas ou apartamentos, e não em acampamentos nem nos viadutos, nem nas favelas ou nos hospícios, nós que vivemos em residências de cujas janelas podemos ver a cidade em seus ofícios e vícios, ou as paisagens do campo e suas luzes, nós que sabemos cantar em prosa e verso, que podemos andar, sorrir, comer, temos a indústria e o comércio, e conta nos bancos, universitários, que nunca fomos à guerra ou despejámos mísseis, nós que podemos ver o mar, as ilhas, as aves, as montanhas, o céu belíssimo, as nuvens pretas, as estrelas, a amplidão do mundo, que temos mapas e a astronomia, médicos e anestesia, hospitais e poesia, que podemos viajar, olhar vitrines e comprar, nós, ai, nós, que sabemos ler e lemos livros, temos fogões em nossas casas, temos camas, temos sexo e desejo, temos o beijo, nós que ouvimos música no rádio ou em discos, que temos filhos com todos os dentes, escola, agasalho e nem vivemos em Cuba, nós que não somos curdos, nem etíopes nem angolanos, que temos florestas imensas, rios, terras, temos seca e temos chuva, temos quadros e gravuras, o luar do sertão e as araras, que choramos no cinema, que temos alma e lágrimas, mil caras, uma só, dedos sensíveis e crenças, amores secretos, jornalistas altruístas, padres guerrilheiros, músicos ardentes, escritores, sindicalistas, líderes sem-terra à vista, violeiros repentistas, loucuras, alvará de soltura, uma terra com palmeiras onde canta o sabiá, que temos carro ou sapato sem furo, temos o passado e o futuro, nós que assinamos revistas e jornais, temos casa de campo, mesmo que seja de um amigo onde há cavalos e pirilampos, nós que jantamos à luz de velas, tomamos vinho e meio embriagados lemos poemas para os passarinhos, ou para as belas mulheres, ou para o ser que amamos, e amamos vários, nós que somo amados, que vamos à praia ou não vamos mas esperamos a praia vir a nós, que vestimos roupas e usamos um antigo anel de família que ainda não foi roubado, e que talvez nunca seja, que tomamos cerveja, que temos a confissão e o perdão, que acordamos tarde e não andamos de trem, que temos salário, ou renda fixa, emprego, família, paixão, nós que temos corpo e estamos vivos, temos amigos, temos trabalho, fazemos exercícios, somos hedonistas, artistas, poucos, nós que fazemos cinema, que sentimos o perfume e temos sonhos, que adoramos ouvir estórias contadas por qualquer estranho, que dançamos alegres com as crianças, que gostamos de lareira e frio, sorvete e calor, o limpo e o macio, que sonhamos navegar tornando o mundo pequeno, que usamos biquínis e tangas, desfilamos nossos seios nus nas escolas de samba, que não somos da ralé nem da choldra, nem da rafaméia nem do lúmpem nem da miséria, que especulamos e ganhamos mas também perdemos, nós que temos raízes, directrizes, teatro, damas atrizes, jogadores, senadores, ai de nós, perdoai-nos, somos os pouco felizes.
Ana Miranda
Texto retirado da revista Ler (Verão de 1999).
Publicado originalmente na revista
Caros Amigos em 1999