sublinhar

quarta-feira, março 30, 2005

I should die before I wake

D e um mundo e outro mundo. Acordar, num amanhecer chuvoso. O corpo dói, todo, um ou outr o nervo sobressaí do conjunto doendo mais um pouco. Essas diferenças são quase imperceptíveis. Não há cheiro de café da manhã, por entre os estores uma luminosidade parda entra no quarto. o único acontecimento é uma ligeira tosse. O homem pensa: talvez tenha fumado demasiadoontem. Mas é apenas isso. Levanta-se, de um pulo, deve estar atrasado para qualquer coisa, não que se lembre precisamente de quê, mas a água quente do chuveiro trará consigo a memória. O homem despe o pijama, enquanto pensa: porque é que ainda durmo de pijama?, olha o seu rosto no espelho, com a brevidade de quem sabe que se vai encontrar e depois vira costas a si próprio e entra na banheira. Certamente quando olhar o fio do chuveiro pensará porque não se estrangular com aquela espécie de armaridícula, mas não o faz. O homem toma banho, veste-se e parte, apressado, para um encontro de negócios. É só isso. Naturalmente, logo à noite, ao adormecer, pensará de novo: I must die before I wake.

segunda-feira, março 28, 2005

música simples

Como se as palavras juntas pudessem mais que frases, ou os sentimentos coubessem entre as regras gramaticais. Por vezes penso que falar assim, como quem respira com a dificuldade dos sonhadores, não faz sentido.
Imagino um campo de trigo acabado de ceifar e o deleite de estar ali deitado olhando o céu, ao mesmo tempo que reflicto sobre a impossibilidade de isso. Porque o campo de trigo é uma realidade de que eu estou ausente, digamos, que para sempre. Prefiro as ruas escuras da cidade, as pensões com nomes imperiais, onde as putas e emigrantes ilegais aguardam numa espécie de limbo, e onde existo com uma força que eu próprio não percebo, nem sequer concebo. Intriga-me que falem do labirinto florido de Creta, a mim, que conheço apenas o cheiro sujo das ruas desertas, madrugada alta, e o som da música perdida de um rádio qualquer. Eu sou da cidade, como quem bebe demais e caí de borco no passeio de pedra, como quem se assusta com esses animais absurdos que encantam os que cantam os montes e vales e outras perdidas noções. Eu, a cantar, se sei cantar, prefiro o olhar provocante de uma mulher que passa na rua sob a luz de néon de um aberto-vinte-e-quatro-horas-dinner. Dói-me um sitio onde não vivem, apinhados, numa intimidade forçada, milhares de indivíduos ávidos…ávidos de avidez, porque de outra coisa se pode estar ávido, num lugar onde o significado se perdeu? Gosto do acaso, e das possibilidades multiplicadas por milhões, e de pensar: será agora que vou morrer? Um tiro, numa rua escura e o disparar do alarme de uma loja de telemóveis. Depois, dias mais tarde, junto das armas a policia colocará os telemóveis, sobre uma mesa coberta pela bandeira, Policia Judiciária, como se fossem armas de tecnologia desconhecida. Ou, e que ideia audaz, como se as palavras fossem, mais que os disparos, o antes, o como e o porquê do crime.

o elogio da urbe. como quem ouve Lou Reed e se deixa ir.

Cuba


“Um país que prefere uma tirania

a enfrentar possíveis riscos,

merece todas as tiranias.”1.



Parece que o destino da ilha remete, cada vez mais, para um pessimismo trágico. A uma morte de distância surgirá um futuro que todas imaginam, de algum modo, igual ou pior. A vida suspende-se, o turismo prossegue, como se o próprio país perguntasse:


Oh! Quando acabará o romance da minha vida.

Para que comece a sua realidade?1.

1. O Romance da Minha Vida, Leonardo Padura, Asa

quinta-feira, março 24, 2005

Renascer

Yo creo que una vida humana está hecha de muchos nacimientos, muertes y renacimientos. No es certo que uno nazca una sola vez. No sé si se nace una sola vez, pero sí sé que se muere y se renace muchas veces, hasta que nos toque la definitiva.
Octavio Paz, Letras Libres, Janeiro de 2005


Foto retirada daqui

quarta-feira, março 23, 2005

A insuficiência de um mundo

Um homem encosta-se à mesa. Olha o ecrã do computador e lê, com lentidão, nas sombras de palavras reflectidas. Pensa. Está sozinho na sala, sozinho no prédio, sozinho. O homem tosse ligeiramente, a mão direita vai até ao peito avaliando do estado dos pulmões, encolhe-se um pouco e depois senta-se. Na feia cadeira de plástico a disfarçar, produto barato, inadaptado, no fundo ridículo. Podia não estar frio aqui, isso ajudava, pensa. A culpa percorre o cérebro, como um pensamento ancestral, imune à lógica dos lugares. A culpa é minha, supõe. Mas, sejamos sinceros, o que o incomoda é um livro pousado sobre a cama, em descanso forçado. O que o incomoda são as páginas vibrantes que esperam pelos seus olhos sôfregos por uma história. Afinal, chove lá fora, e o homem, sentado em frente do computador, como quem finge escrever uma história, ou uma confissão.
Em certos dias desiste mesmo de tentar confundir com palavras a brevidade do mundo, e encolhe-se ainda mais no mundo fechado entre o nada e o nada. Percebe, quando de fugida apanha um sorriso vogando no ar, que ainda teria tempo para afagar com as costas da mão direita uma árvore perdida no centro de uma serra de que ouviu falar quando era criança. Sente-se perdido nesses pensamentos, ao ritmo lento de um autocarro apinhado de gente, as ruas passam, atravessam-se entre os seus olhos e o sonho e ele, perdido (gosta tanto desta palavra), pensa que um dia, como outro qualquer, o mundo desaparecerá do seu corpo.

terça-feira, março 22, 2005

Memórias fingidas

O adro de uma igreja, e eu nunca lá fui. Uns passos numa noite de chuva, sob a luz de um candeeiro de rua, com a sombra apropriada a quem se esconde, a gola do sobretudo tapando a cara, e uma certeza: não era eu. Uma arma guardada no bolso, um medo como causa de cada desamparado gesto e uma voz de mulher que dizia num sussurro: espera. E, o que dizer, da luz das velas, do cheiro acre de um monte de lixo amontoado à entrada e de um mendigo bêbado que pedia um cigarro? Nunca lhe dei esse cigarro, nem nunca ele me pediu. Não era eu, reafirmo. Se aquela mulher que me pedia para esperar, era, porém, alguém que eu conhecia de um livro, ou de um sonho, isso, não vos posso negar. Se ela morreu de um tiro de uma pistola que estava no meu casaco que nunca vi, isso não sei. Mas que a pistola era minha, ou que eu vi aquela mulher naquela noite, ou, simplesmente, que sei precisamente que noite era aquela, isso, desculpe, não lhe posso dizer. Posso aguardar toda a noite sob esta luz branca, acusadora, que se projecta na minha cara, ou, se preferir, toda a vida, porque, a verdade, é que esse crime, se o cometi, existiu apenas em sonhos, e este interrogatório, digo-lhe, é apenas má literatura.

Does America love success?

A resposta é: claro que sim, como todos as culturas. O sucesso é enaltecido em todo o mundo, mas o que difere, em muito, é a definição de sucesso de cada legado cultural. Isto, por estranho que pareça, surge a propósito de dois filmes: o primeiro, votado pela Academia como o Melhor Filme de 2004, Million Dollar Baby de Eastwood; o segundo, não por acaso, um filme de Sergio Leone: Once Upon a Time in America. A acrescentar aos filmes, uma frase lida (e citada de memória) no Jornal de Letras a propósito do primeiro: o cinema clássico americano gosta de falhados (losers) como personagens centrais.

Pensava nisto e perguntava-me: será do sucesso que a América gosta? ou mais, e de forma primordial, do arriscar (take a chance) em prol do sucesso?
Vejo, na corrente com que me assalta a memória, filme após filme, livro a pós livro, vida após vida, e sigo de fim trágico em fim trágico, de grande derrota em grande derrota e, por vezes, de êxitos absolutos. E penso: o segredo, diz-se: a vida, reside na aventura de tentar, em grande, contra tudo, para obter algo que se quer.

Porque tudo é economia, insiro aqui umas discussões com amigos: não há em Portugal, ou no sul da Europa em geral, uma permissividade especial para com o crime fiscal, não é aí que reside o problema da competitividade das empresas e da pobreza do Estado. Na verdade, o que existe é uma cultura de baixo risco, um desejo de triunfar do pequeno furto, do pequeno desfalque, um limiar do pequeno desejo: uma casa, um carro. Ninguém sonha alto, ninguém dispõe de tudo pelo sonho. A sociedade, como um todo, olha de lado os grandes falhados, e tem como heróis (a que se refere sempre com ironia fingida) um conjunto de personagens de pequena vida, de pequeno sucesso. Do outro lado do atlântico, no lugar de nascimento do sonho moderno, o imaginário da economia mais inovadora do mundo está repleto de heróis bandidos, de crimes graves, de fraudes monumentais, de despudor nas relações com o Estado. Tudo crimes, como aqui, mas excelsos, intempestivos, monumentais, como quem joga a sua vida no tapete verde da roleta, mas a vida toda, não míseros patacos.

1.

Talvez por isso, lá ao contrário de cá, a inovação não seja sufocada, as artes não navegam no pântano da conformidade, antes brotem selvagens, como uma visão sempre renovada do mundo. Porque enquanto uns arriscam tudo por muito, outros arriscam quase nada por muito pouco, enquanto uns são grandes heróis e grandes falhados (losers) outros são, que triste sina, pessoas banais. O falhado (loser) é, mais do que o homem de sucesso, a verdadeira imagem da América, do seu triunfo. E, ainda mais paradoxal, é essa a imagem que mais desafia o nosso intimo, que mais nos dá a perceber o “defeito” de não-arriscar como sendo a coisa mais triste que temos.

2.

[escrito a correr. na senda de uma imagem qualquer, de como a realidade nem sempre é o que parece, e dos medos profundos, meus e de toda a gente. antes de mais, uma crítica severa a mim próprio, em virtude de já não o ser, e um elogio ao novo mundo novo, onde quer que ele exista]



1. Picture Collection, The Branch Libraries, The New York Public Library
2. Jasper Johns, Flags 1, 1973

domingo, março 20, 2005

Gala II


Galarina - Salvador Dalí

quinta-feira, março 17, 2005

Wyeth (de regresso)


Black Water

terça-feira, março 15, 2005

Liturgia

Poderei insistir na palavra, agora que o Inverno finda nas vertentes verdes, vivas, dos montes?

Como dizer, como dizer-te, que o gesto lento sem significado, que no inicio da tarde, desponta da curva do meu ombro envolvendo-te, possui o encantamento oculto do chamamento dos anjos, das estelares primaveras, da terra, da semente, da fecundidade. Como? Se hoje o meu braço divaga, absurdo, no silêncio sem terra.

Julgo-me planta viva num lugar onde sombras de seculares bravuras guardam dos outros a tua voz.

Deixo para trás a brandura dos dias, aquecido pelo sol, regado pela tua seiva.

Fecundando a terra. Invadindo a cidade.

Qual de nós dois pode, ou quer,
medir o caminho que nos separa do sempre?

segunda-feira, março 07, 2005

como quem esquece as palavras

Vamos soprar para longe a realidade. Vamos, juntos, porque só juntos existimos, fugir da voz razoável que nos prende os gestos e nos despenha nos abismos do quotidiano. Nunca ninguém o disse, mas é a esta pasmaceira que se acerca de nós sempre que nos deixamos envolver pela constância dos dias que se chama inferno. O mundo existe apenas no local solar para onde os teus olhos olham, do outro lado apenas existe uma sombra, gigantesca, sem sentido, sem sentidos. Como se eu fosse cego sem essa luz, como se as minhas mãos perdessem o seu sentido primordial: o teu corpo. Não, ou antes sim, ou talvez, suporto este vazio de coisas comuns, esta falta dessa terra fecunda: o teu ventre, onde... censuro as palavras deste texto para com mais força te dizer do indizível. Havemos de acordar num mundo fora do mundo, numa manhã límpida de primavera, e havemos de dar as mãos como quem se transcende, os corpos como quem se esquece, como quem se entrega, inteiro, ao ciclo vital do universo.

quinta-feira, março 03, 2005

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Manuel Bandeira

[a minha memória, de vez em quando, devolve-me estes poemas durante as pausas do trabalho]

Acthung – da natureza fugaz da manhã

No começo são as palavras. Antes que aconteça o movimento nomeio-o. Depois paro, aumentando o silêncio. Olho o telefone, brutalmente silencioso e espero. Antes de mais, procuro olhar em volta tentando preencher os espaços com as coisas bonitas da vida. Nomeio-as: as flores, a música do rádio, o motor do carro roncando pela manhã a caminho de um sitio só nosso.
A seguir, ou antes, são as lágrimas, a água primordial, em nós, reorganizando a memória. Antes de mais, o silêncio, e o susto da pergunta: o que está a acontecer? E a minha mão, que escreve, pressionando o teclado, e que está na tua, quente, aquecendo. A minha mão, eis um segredo, existe duas vezes. Tal como eu, tal como tu. Desde a silente memória do dia em que nasci, ou até antes, desde sempre, anteriormente a tudo. Nós dois. Um corpo e outro corpo. Uma mão em outra mão. E palavras. Mais do que tudo isso: nós dois. Essa realidade imanente que somos desde sempre, antes de tudo. Penso: um dia nas primordiais águas de um oceano imenso uma célula levava já inscrito o momento em que nós dois diríamos: olá. Como se uma palavra banal pudesse, sozinha, dizer de todo o amor indizível.

Na rádio:
Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abecedario
Con él las palabras que pienso y declaro
Violeta Parra

quarta-feira, março 02, 2005

are you talking to me?

- "Estás com um ar cansado". Anda uma pessoa a passear pelo shopping, encontra uma amiga, blá blá blá, está tudo bem?, blá blá blá, e depois esta: estás com um ar cansado. E depois uma pessoa pensa nisso, até porque escolher uma marca de cereais nãos nos ocupa o cérebro plenamente. Um pessoa começa a pensar e sente-se realmente cansado: dormi pouco, ando a dormir pouco e mal, os brônquios continuam a dar ao respirar um ar de fole furado, o trabalho...sempre o trabalho, as coisas que não faço, que me esqueci de fazer...havia um qualquer telefonema para uma certa pessoa, mas quem?...uma mensagem para responder: ainda bem que gostaste J. Estou com ar cansado – e logo me apetece gritar: mas o quê? já se nota? Havia uma base de dados da biblioteca que está eternamente a começar, e uma loja de roupa com uma camisola azul claro que queria comprar, e o cinema, o teatro, dizer-te mais um milhão de vezes: amo-te. mas não há tempo. O que existe, agora, este momento, é o trabalho, com metade do cérebro a ouvir o que me dizem e um desejo de mandar todos...para longe. Os sonhos de noites de verão também interferem. Sempre quis ser uma rock star, mas agora nem existe mais rock. O tempo passa...uma amiga faz vinte e oito anos e ponho-me logo a pensar que daqui a pouco sou eu, e uma lista mental abre-se logo perante mim, como um julgamento: filhos? Não; árvore? Não; livro? Não. Não, não, não...tudo não. Nestas alturas, e isto é verdadeiramente risível, tenho pensamentos do género: eu devia passar algum tempo desempregado...afinal nunca estive, talvez me fizesse bem. Mas logo desmancho o absurdo de pensamentos assim. Deixo-me estar. Escrevo e o tempo passa e ainda tenho que fazer umas coisas antes de sair do escritório. Uma ar cansado...o que me chateia não é ter ou não ter um ar cansado (hamlet pós-moderno – com físico e sem metafísica), o que verdadeiramente me irrita é estar mesmo cansado. Mas não vulgarmente, como quem trabalhou muito e se cansou (eu não faço isso), mas como quem nada fez e desejou fazer, como quem quer fazer mas desiste em prematura ocasião. Agora levanto-me e vou. O pessimismo, o cansaço (suponho que não o ar de cansado) ficam aqui. Afinal escrever sempre tem os seus efeitos práticos no curto-prazo.

terça-feira, março 01, 2005

Gala

Galatea de Esferas, Salvador Dalí

[um quadro em forma de memória, em forma de eternidade, em forma de amor, em forma de Dalí e Gala]

se eu soubesse o que estas palavras dizem*

Alguns dias existem assim: quietos. Entre sons vagos que ouvimos por entre o não ouvir.
Estou no escritório porque é um bom sitio para se estar, está frio, mas hoje, coisa rara, há um ligeiro calor porque o sol brilha desde o meio-dia. Podia ser um presságio, mas creio que não é.
Eu escrevo, faço um intervalo, sabendo que isso implica sair mais tarde, mas não faz mal. É que estava sentado a ver a luz do sol entrando pela janela e dando aquele brilho comovente (estranho adjectivo, admito) ao chão de madeira da sala. E pensei que tu já existias em mim no tempo em que eu era criança. É estranho, senti isso, assim de repente, como uma alucinação, encaixas nas tardes todas da minha vida. estás lá. Não me perguntes o que quero dizer com isso, eu não sei. Apenas digo, escrevo, à espera que isso me dê alguma espécie de compreensão. Não encontro. Desconfio até que escrevo mais um texto circular, em volta de mim. ou então não. Mas vejo-te na casa da minha avó, o meu espaço mítico, como se alguma vez tivesses sido nele uma presença real.

Reparo que o que escrevo tem algo de absurdo. Sou constante na ironia sobre mim mesmo, é uma espécie de defesa contra diversas maleitas. Mas, é mesmo estranho que faças sentido num lugar assim.

Talvez já não te possa circunscrever aos lugares específicos onde te vi, ou às palavras. Como se crescesses em mim, envolvendo todos os lugares, todas as memórias. O mais estranho é que não provocas conflito... entras pelas minhas tardes de infância com o mesmo sorriso com que entras nas minhas tardes desta vida, e eu sorrio de volta, completamente fascinado.

Confesso: Tenho medo das palavras (e dos gestos) por isto mesmo: porque existem aquém do que sinto. A compreensão é também apenas um farrapo daquilo que somos. Como quando comemos uma manga numa tarde de calor, sentados ao sol, propositadamente ao sol, e nos deixamos levar pelo sabor: é que se quisermos saber, teremos que identificar a parte do sabor que nos transmite a língua, o nariz, os lábios, e os dedos das mãos, e a parte do sabor que sentimos ao comer a manga e que existe porque lemos jorge amado, ouvimos caetano, bebemos o sumo de outra manga escorregando no corpo de uma mulher. Uma manga não é só uma manga, não pode ser, nunca será.

Afinal, tu existes em mim desde sempre, marcada na minha pele desde sempre, sorrindo-me nas tardes de infância no tempo em que havia infância e eu também sorria. Não há nisto nada de místico. É real. Palpável. Estás lá, sempre que me lembro, embora nunca apareças nos instantâneos dos dias de festa.

E agora eu sopro ao teu ouvido uma palavra: amo-te. porque finalmente posso devolver o amor que me deste, sem que soubesse-mos, durante todos os dias da minha vida.


*não minto. não sei.

palavras para ti

Não sei se te interessa o sol que entra pelo escritório a esta hora da tarde, e me dá uma subtil esperança de calor. Não sei se te interessa a história da minha vida, provavelmente apenas vagamente. Não sei se as palavras que escrevo, ou as palavras que sou, te interessam. Não sei se repetir vezes sem conta: amo-te, gastará a palavra. Não sei se queres ouvir-me falar sobre as tardes imensas que passei bebendo vinho e sonhando com projectos de futuro que, até eu, já esqueci. Não sei se me queres ouvir falar de pessoas que não conheces a percorrer ruas de que já não te lembras. Nem sei se me queres ver, numa imagem de 5.3 mg pixels. Não sei se te conta do dia em que uma porta abria o caminho para o precipício e eu desejei atirar-me. Certamente não queres ouvir do rumor dos corpos, e dos gritos, gemidos, em outras tardes (como se o verão fosse um tempo eterno dedicado ao amor). Não sei. E se te evoco é porque tudo isto tem mais sentido agora. Escrevo: como se a história da humanidade não fosse mais que uma desculpa para nos encontrarmos. E é isso que sinto. Deflagrando como um ramo de flores na tua dor, peço um sorriso e prometo: as palavras nunca acabarão. Nem eu. nem tu.

só para matar o tempo

Escrever serve essencialmente para matar o tempo, é mais ao menos como passar tardes a ver gatos vadios no grande quintal do centro da cidade. Eu fazia isso em criança, depois abria livros do novo testamento, ilustrados, muito ilustrados. Nesse tempo gostava de velas, por isso gostava da procissão nocturna do 12 de Maio, partia da igreja em frente e, engraçado, passava por algumas ruas secundárias fugindo ao centro da cidade, nunca percebi porquê. Mas nunca me vestiram de anjo pela Páscoa, da primeira vez que tentaram eu fartei-me de chorar, suponho que, já então, não queria ser anjo. Desconfio mesmo que queria ser pecador, uma coisa que deve acontecer frequentemente a quem estuda num colégio católico.
Como eu dizia, escrever é essencialmente passar o tempo. Porque pousei o livro do l.f. veríssimo em cima do sofá e me sentei ao computador para, creio, fazer um trabalho para empresa. Mas não fiz.
Escrever, sempre me parece que Borges tinha razão, é antes de mais uma aprendizagem da leitura. E de nós. Que freudiano que eu ando. Mas, a sério, escrever, e acho que é o único motivo pelo qual escrevo, dá-nos um contacto mais próximo com o acto de ler. E ler é um dos grandes prazeres. Bom, não posso esquecer o prazer de comer uma manga numa tarde de verão, ou de um vinho. Claro que não me posso esquecer do sexo, mas isso, convenhamos, nunca esquecemos.
Escrever é essencialmente matar o tempo, e por hoje, para mim, já chega.

Esta é uma boa hora para dormir.

amiga,

Parabéns!

[podia acrescentar muitas palavras, mas acho que o essencial é dizer-te que continuas a fazer-me acreditar que o sonho existe. beijos]

vozes: tempo e espaço

“Muito se pouparia em papel em em espaço virtual nos servidores de todo o mundo (será que devo pôr ascoisas assim? Refiro-me a blogs e páginas pessoais, sei lá se é nos servidores que ocupam espaço...) se mais gente lesse essa frase. Muitos de nós forçamos a atenção dos outros, impomos a nossa presença escrita sem que tenhamos nada para dizer. Felizmente há excepções.”
a vizinha

Este comentário deixou-me pensativo: não por me sentir ofendido, claro que não, acho até que a leitora, muito simpaticamente, me incluía nas excepções. Mas a verdade é que concordo e não concordo com ela e estas dúvidas (a frase encaminha-se para um final verdadeiramente infeliz) são o que nos faz pensar (frase, afinal, parva mas inegável). Adiante: concordo que, muitas vezes, forçamos a atenção dos outros, ocupando um espaço na sua vida que limita o tempo de cada um para outras coisas. Por outro lado, não acho que alguém não tenha nada para dizer. Bom, até acho. Explicando: há muitas pessoas para quem não tenho a mínima paciência, e, de facto, ocupam tempo na minha vida que podia gastar com outras coisas, mas tenho quase a certeza que existe um espaço para eles, junto de alguém que realmente lhes queira dar atenção. Ora, uma vez anulada a ideia de espaço físico: livros e servidores são suficientemente grandes para tudo conter, todas as vozes, todas as coisas. Alguém, algures, quererá ouvir precisamente aquilo. Sou completamente a favor dessa total anarquia do que é dito mesmo quando me atrapalha, mesmo quando esconde aquilo que eu quero ler. Porque, e aqui concordo de novo, todas essas vozes tendem a esconder de nós aquilo que queremos ouvir. No meio da multidão deixamos escapar a música que queremos ouvir e, frequentemente, não chegamos a saber que existe. Ainda assim, prefiro a vozearia anárquica ao silêncio, prefiro perder muitos se posso encontrar alguns. Daí que me chegue uma tristeza média que se queira contar, ou, e porque não, uma alegria média que se queria fazer ouvir. Chega-me e sabe-me bem, ouvir muitas vozes. Não porque isso faça de nós seres menos sós, apenas porque prefiro a solidão vivida entre a vozearia dos outros, de certa forma confronta-me, e isso, creio, é bom. Acho, mas isso se calhar é abusivo da minha parte, que a leitora se referia exactamente a isso: ao excesso de vozes, à dificuldade de encontrar aquelas, poucas, que queremos ouvir. E de novo penso que concordo e não concordo. Porque é necessário que todos falem para sabermos quem diz aquilo que queremos ouvir.


PS: Este comentário tem outra virtude: dar-me uma frase para explicar porque é que sou tão reticente a fazer comentários em outros blogs: “Muitos de nós forçamos a atenção dos outros” – suponho que é uma coisa que não quero fazer. Apenas quando penso que nunca julgo isso das pessoas que comentam aqui, antes pelo contrário, não forçam a atenção mas despertam-na, acrescentando algo, é que me deixo de tretas e comento também.

PS2: Finalmente: porque de vez em quando se criam mal entendidos (julgo que pela inépcia de quem escreve) e porque não conheço a autora do comentário, gostava de acrescentar um agradecimento e, porque não, desejar que regresse. E, já agora, acrescentar que deviam ir visitar, mas isto sou eu a dizer.

PS3: já agora, agradeço também os outros comentários e as visitas e as leituras que me proporcionam, e as músicas, e os quadros e fotografias, as ideias, e os encontros, etc.
[quase dois anos é uma boa altura para sentimentalismos :)]