Entregou-me nas mãos um livro: o medo
entregou-me nas mão um medo, o livro.
e eu entreguei-lhe o medo em palavras
que surgem de um dentro que nasce antes de tudo,
e que está lá,
insidioso, espreitando sempre.
Acontece-me à mesa de um café engasgar-me
com as palavras,
seria torrada mas também poderia ser destino.
Dentro de mim as coisas existem amontoadas,
cada uma delas entrando nas outras, cada um delas cravando a sua presença nas outras.
Como quando digo que respiro,
mas não é isso.
Há muito que deixei que a respiração fosse apenas um gesto que não percebo, não penso, apenas, vagamente, sei que existe.
Até um dia,
como em todas as histórias,
mesmo aquelas que não contamos,
até um dia, em que era um vez,
um homem despido de si
saindo da floresta do alheamento
parando, assustado, a olhar o mundo
reconhecendo cada pedacinho como se fossem os romances lidos
e chorando
Porque para dar um passo precisamos de acreditar nas nossas asas.
Havia uma noite, de verão ou de inverno, havia um desejo de passar, morrendo, a imaginar a vida como se isso, bernardo, fosse a vida.
Um comboio da linha de cascais, seria sintra? uma viagem interminável. A vida, em forma de mentira.
Um relâmpago, pelo contrário, nunca me assustou. assusta-me roubar os lençóis de cetim de uma cama numa casa roubada para fazer amor contigo, tangerina. Ou, obviamente, não contigo tangerina, com ela, tu.
Acontece reconhecer no mundo o mundo, mas não a mim. acontece-me ver as flores mas não saber em que exacto momento deixar o nariz aberto ao seu aroma. Acontece-me frequentemente o néon, ou as luzes fortes, ou a estátua equestre de sonhos roubados.
Tempos ausentes dos tempos, presentes nos tempos. Sobre o escândalo, sem escândalo, de uma perna envolvendo a outra perna.
Teremos sempre goa, diria bogart no fim da fita. Mas eu não sou bogart nem tenho um amigo que caminhe comigo para o nevoeiro. Eu nem gosto de nevoeiro, impede-me de ver e eu, confesso, sou um voyeur.
Entregou-me nas mãos um livro: o medo
Entregou-me nas mão um medo, o livro.
E eu desenho com um dedo, nessas páginas, inscrições de uma terceira vida. folhas de livros, a vida também é isso: folhas de livros reflexo de nós em outros livros ou na vida, tanto faz.
alexandra olha o seu filho deitado na cama; o comandante pergunta: e agora?; tangerina deitado na cama roubada; um homem sentado na esplanada olhando; um cortejo de sonho de príncipes sobrevoando, fantasmagórico, a baixa de lisboa; a árvore de letras; um apartamento em new york city cheio de baratas; o acaso...
sei que escrevo demasiadas reticências e que digo frases sobre lombadas que seguram uma vida.
a imposição de ter nascido no dia dezassete de agosto de mil novecentos e setenta e sete.
não sei se posso acrescentar alguma coisa a duas vidas num pedaço de papel, ou se estou confinado a ler, imaginando a vida: viver.
Entregou-me nas mãos um livro: o medo
O livro físico mantém-se fechado ao meu lado, as suas palavras são, hoje, o meu corpo.