sublinhar

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

devagar, por uma alameda entre as árvores

é a tua mão.
é a tua mão esta sensação que tenho na palma da minha mão. é o teu perfume. sim, o cheiro do teu corpo, é isso.
na tarde.
o tempo parado, ausente, um vento gélido, e um caminho. a rua, a que despropositadamente chamam alameda, está à minha frente. alguns, tímidos, raios de sol aquecem de leve o meu corpo.
tu.
existes e nisso reside um segredo só nosso. palavras. por vezes pergunto-me para que quero eu palavras se é o teu olhar, e apenas ele, que tem o poder de me fazer acreditar que existo. fora dessas horas não sei. simplesmente penso: pode ser que aconteça existir, pode ser que não. mas olhas-me e eu devolvo o olhar em fascínio absoluto.
o espaço.
não sei se hoje durmo deitado nesta ou em outra cama. não sei se este corpo existe, ou existe outro aí, ao teu lado. não sei.
o tempo.
nem do tempo, que me parece, nestas horas, apenas uma subtil invenção dos cínicos.
tu.
existes. e é como se nada mais tivesse qualquer importância.

domingo, fevereiro 27, 2005

7.º o que temos para contar?

“Mas eu não tenho mortes nem viagens que valha a pena contar. Não tenho casos de extraordinária sorte nem de incrível tragédia. Eu tenho apenas uma tristeza média.”

Um pedacinho da última história do livro “Pensei que o Meu Pai era Deus”

6.º agenda

5.º convite

"Les Porteuses de Mauvaises Nouvelles"

Wim Vandekeybus/Companhia Instável
Auditório da Universidade do Minho (Gmr)
16 de Março
22 horas

Organização: Espaço Oficina

4.º um post perfeito

Este [pela escrita e pela imagem]

3.º O livro do fim-de-semana


Maior parte das pessoas sabe: o novo livro de Paul Auster publicado em Portugal, não é um livro de Paul Auster. Reúne textos escolhidos pelo autor a partir de um conjunto de histórias curtas enviadas para um programa de rádio. Resumindo: o projecto partiu de Auster, que pediu e leu as histórias na rádio, e contou com a participação de milhares de americanos dispostos a contar um pequeno episódio real sobre a sua vida. Como se lê em todas as notas sobre livro, este é e não é um livro de Auster, porque, todos concordam, o espírito do Autor está presente.

Na sua introdução Auster diz que dificilmente alguém passa por estas histórias sem chorar e sem rir. Eu, que estou habituado a acreditar nele, duvidei…mas apenas até que os meus olhos se enchessem de lágrimas com algumas das histórias deste livro. E assim Auster, através de outras pessoas, nos devolve a capacidade de acreditar em duas das coisas mais belas que o mundo nos pode oferecer: o acaso e, claro, as pessoas.

2.º O elogio de Inês


Pela crónica da semana passada (no Expresso) sobre Camila Parker-Bowles e pela crónica desta semana sobre todos nós. Em geral, pela sua escrita.

1.º Quixote por Bloom

“D. Quixote é corajosamente louco e obsessivamente corajoso, mas não se engana a si mesmo. Ele sabe quem é, mas também quem pode ser, se assim decidir. Quando um padre moralizador acusa o Cavaleiro de falta de realismo e o manda ir para casa e parar de vaguear, Quizote responde que, realisticamente, como cavaleiro errante ele endireitou coisas erradas, castigou a arrogância e esmagou monstros variados”

[a lembrar a necessidade de reler Quixote, sempre]

Harold Bloom, DN

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Do regresso às mesmas palavras

Eu devo alojar os meus sonhos
naquela pasta preta, guardada
ao fundo do armário velho
da casa da minha avó.


Esse armário existe no propósito de lá colocarmos coisas assim: as tardes de criança, o dia em que fumei o primeiro cigarro ao som dos Doors, as tardes de sol que passei cantando coisas absurdas para um gravador desengonçado.
A existir, digamos que existe, esse armário, existe lá dentro uma pasta preta, como aquela que o meu tio tinha. Estava cheia de memória, a pasta do meu tio, cheia de recortes, fotografias e coisas. Não era fácil perceber aquela pasta, nem o meu tio. Perceber, suponho, não é fácil.
Mas acredito que tenho uma pasta assim, num armário qualquer. Porque em algum sitio eu guardei o tabuleiro verde (pedaço de cartão) onde, tarde após tarde, passei as horas de infância a jogar futebol de mesa. O relvado, os jogadores, a imaginação minha daquela época. Deve existir um sitio onde isso está guardado. Um sitio físico, que contrarie os dias em que me esqueço.

Hoje pensei: já alguma vez alguém perguntou a um escritor de uma autobiografia se aquele livro teria alguma coisa de autobiográfico? É que a memória traz-nos estas surpresas. Quanto de nós esquecemos? e porque supomos que aquilo que guardamos é de facto o mais importante?

Eu gostava de saber o que estava a fazer na tarde do dia 23 de Maio de 1985. Gostava, pronto. Sem nenhum motivo em especial. Gostava.

terça-feira, fevereiro 22, 2005

Teu Corpo Principia

Dou-te
um nome de água
para que cresças no silêncio.

Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.
Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)

Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.

Silêncio e sol – verdade,
respiração apenas.

Amor, eu sei que vives
num breve país.

Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.

Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.

O maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.

O vida perfumada
cantando devagar.
Enleio-me na clara
dança do teu andar.

Por uma água tão pura
vale a pena viver.
Um teu joelho diz-me
a indizível paz.
António Ramos Rosa

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

e o assunto termina aqui

Depois de uma breve análise [e dois telefonemas] descobri que maior parte dos meus amigos, e uma boa parte dos leitores deste blog, são eleitores do BE.
Ainda bem que eu não falo muitas vezes de política. ;)

as eleições, outra vez

Há uns meses atrás, um amigo meu, que não estudou Ciência Política, insistia comigo que os liberais são todos de esquerda e apresentava exemplos de todo mundo. Eu ainda tentei explicar que o Liberalismo nasceu dos mesmos senhores que criaram o Liberalismo económico (a não intervenção do estado, o utilitarismo, etc) e que isso era completamente incompatível com ser de esquerda. Que as ideias liberais adoptadas agora pela esquerda surgem todas de pensadores liberais e são, sem excepção, coincidentes com a filosofia de não-intervenção do estado (na economia e na vida pessoal dos cidadãos) e, por isso, podem ser classificadas como incompatíveis com toda a teoria socialista (marxista, etc) relativa à posição do estado na sociedade. Não é por acaso que do BE se ouve o mesmo discurso desde o seu inicio, discurso esse que não contém nunca qualquer referência a grande parte dos principais problemas do país. O BE tem algumas posições conhecidas (e meritórias): o aborto, a liberalização das drogas (suponho que apenas das ditas leves), a que junta um discurso sobre economia que assenta no pensamento do senhor Louçã, cujo o teor, tenho a certeza, 90% dos eleitores do BE são incapazes de explicar. Isto não é um partido mas uma associação de causas breves, causas liberais (que, valha-nos Deus, são originadas desses mesmos diabos que “inventaram” o Liberalismo económico). A questão é que elas são coincidentes com o pensamento deles (dos liberais) e completamente incompatíveis com o dos bloquistas, mas enfim. É que se querem intervenção do estado na economia: com ensino, saúde e sei lá o que mais no aparelho do estado; se recusam as reformas da S.S. no sentido da privatização, se recusam a privatização de seja lá o que for. Como, sendo assim, se pode pedir ao estado que não intervenha no resto da nossa vida? Eu não percebo.
Para mim o estado deve assumir um papel reduzido ao máximo, em tudo: na economia e na vida social. Já para não falar da vida privada onde o estado só pode estar ausente. E isso tem lógica. Agora pedir que me dê dinheiro e uns quantos serviços de borla e em troca pedir-lhe para fazer o favor de não meter o nariz onde não é chamado é, para além de ilógico, completamente irrealista. Nunca ouvi falar de um estado com forte intervenção na economia que não a utilizasse para ter uma forte intervenção na vida social, quando não até na vida privada.
Basicamente é por isto que não gosto do Bloco. E se é muito politicamente correcto ser de esquerda neste país, a mim não me apetece ser politicamente correcto, nunca quis ser e não ia começar agora.

Para quem se lembrar de perguntar: e o que raio fazes tu a votar no PP? É simples: pragmatismo. É que contra o absurdo desejo da esquerda de fazer de cada português um funcionário público (ou semi-público, que isto dos estágio é pago a meias), e com o triste cenário da liderança do PSL, o meu voto fazia, fez, todo o sentido.

O discurso na política e a política nos discursos

Vitórias e derrotas
Como não se via há muito tempo existem vencedores e vencidos, felizmente. Como disse Paulo Portas: já ninguém tem paciência para vitórias morais.
Os vencedores e os seus discursos
O PS ganhou, o PS ganhou de forma esmagadora, como nunca tinha ganho. O seu líder, como tradicionalmente faz o grande vencedor das eleições, é o último a falar ao país. Vemo-lo a entrar, pela porta outra porta que não aquela que se espera, e precisamos de nos lembrar com muita força que ele ganhou, ganhou mesmo, por muito, completamente. Porque o homem bem embrulhado num sorriso de plástico mal embalado e fala, como sempre aliás, de forma hesitante. E o que diz? Nada. É impressionante o vazio que sai da boca do homem mesmo depois de ganhar as eleições. Desejo-lhe a melhor das sortes mas desconfio...desconfio muito.
Pormenor: A sala cheia de governantes do governo do Eng. Guterres (lá que é assustador é)
Desejo: que não sejam tão maus como parecem, para bem de todos.
O Bloco também ganhou, muito. Perdeu a oportunidade de ser parte importante da governação mas isso é algo que dificilmente poderia controlar. Ganhou muito e ganhou cedo. Ana Drago discursou ainda os resultados das sondagens estavam frescos, e Louçã veio, antes que fosse tarde, pressionar o PS para que não fugisse da esquerda. Pressionou e mentiu descaradamente. Como Marcelo Rebelo de Sousa e Álvaro Barreto referiram no canal 1, é impossível fazer o referendo até Julho, como prometeu conquistar o lider do Bloco.
O PC também ganhou, galgando a onda do aumento da esquerda e da simpatia do seu actual líder, que aliás é bem melhor no contacto directo com as pessoas que nestes discursos de púlpito, onde diga-se, voltamos a ver o mesmo PC, sorumbático, chato, velho.
Nota importante: da vitória ficou este rosto de vencedores sem discursos pensados para incutir o mínimo de confiança. Um vazio confrangedor do PS, um BE cada vez mais arrogante e um PC igual a si próprio.
Derrotados
Primeiro o PP. Paulo Portas é, era, o líder mais inteligente dos cinco. Era, é, o único capaz de escrever um discurso decente e dize-lo de forma convincente. O único discurso empolgante da noite, até alcançou lágrimas na plateia. A política movida a paixão outra vez? Não, seria exagero. Apenas a competência de quem sabe fazer as coisas. Mas, por muito que chateie quem não gosta, assumir uma derrota assim, é bonito. Claro que isso deixa muito por dizer...ele não vai para muito longe, provavelmente regressa a tempo das próximas legislativas, mas o efeito político, público, é de brilhar no meio do absoluto cinzentismo.
Quem também não tem nada de cinzento é Santana Lopes. Fez um discurso que em algumas partes foi, literalmente, igual ao de Portas (acho que havia mesmo frases roubadas) e depois concluiu, de forma impossível, pelo: fico por aqui a ver no que dá. O homem está louco, e tem um grupo de fans igualmente loucos a seguirem-no como quem segue um profeta. Como disse Pacheco Pereira na SIC, é preciso coragem (e não é só, como se diz habitualmente, coragem política, mas também coragem física, para defrontar a liderança do PSD – eles são loucos, são mesmo).

PS: Esta análise não pretende ser rigorosa, não é. Não me julgo o Professor Marcelo armado ao comentador isento, não sou. QQ pessoa consegue perceber em quem votei pelo que escrevi acima,. e votei mesmo. Não sou de esquerda, desde há muito tempo. Não gostei dos resultados, mesmo nada. E não tenho bom perder, nunca tive nem quero ter.

O que não impede de saber distinguir entre vencedores de vencidos, de respeitar a vontade dos eleitores e de desejar que o próximo governo não cometa tantos erros, e foram muitos, como estes dois últimos governos da coligação PSD-CDS/PP.

PS1: outra coisa: este é provavelmente o último post político deste blog. um assunto que só me apeteceu hoje porque tudo o mais está além das palavras que tenho. muito além, felizmente.

sábado, fevereiro 19, 2005

para acabar de vez com a palavra: talvez

Sim, dizias tu, mas em seguida
corrigiste: talvez. Esta
é a única palavra
que não tem casa. Que mora
no intervalo
entre o som e o silêncio.

de Albano Martins, in "Revista Correntes D' Escritas"/Fevereiro 2005
encontrado
aqui

[um dia cresci...e apeteceu-me viver...e banir de vez as palavras absurdas que me prendiam.]
[o título do post é meu. ]

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

an ancient word of wisdom

silence

deleted

computer collapse followed by a nervous breakdown.

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

It Takes Time



No equation
to explain the division of the senses
No sound to reflect
the radiance of time
In the beginningest dream
Halls of disorder
Where we are swept to encircle dawn
Strapped in a low car
Racing thru silence
Trumpeting bliss
You could kiss the world
goodbye

Standing outside the courthouse
in the rain
Seemed like a lost soul
from the chapel of dreams
With a handful of images
Faces of children
Phases of the moon
One little thing you get wrong
changes the dimensions
Streets, swept memory
Diffused and lost
Like a prayer in the sun

Sometimes you can't tell
whether you're waking up
or going to sleep
Spiralling
Unnumbered streets
All the games cannot be yours
All the sights, the treasures of the eye
Does the divided soul remain the same?
No equation to explain
Destiny's hand
Moved, by love
Drawn by the whispering shadows
Into the mathematics
of our desire

Patti Smith

para acabar de vez com o silêncio

sinal horário: uma e quarenta minutos a.m.. não durmo, ainda. confronto o emaranhado de palavras que se acercam. penso: talvez o importante seja escrever, nem que seja apenas algumas palavras sem sentido, escritas para que o pulsar do meu sangue se sinta na distância. como se um dia remoto me tivesses dito: *fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar
devagar*

as palavras são apenas o respirar do meu corpo que se estende no universo para que o ouças. fazem sentido porque me mantém vivo para lá da evidência dos dias banais. nas margens do sonho. anda, dá-me a mão.
Vem, vamos viver longe do tempo que passa, vamos viver apartados da existência do mundo. Hoje apetece-me beber um pouco e afogar-me no teu corpo. Esquecer. Vem!
E digo para mim prórpio (hoje sou a tua voz): Pára de tentar explicar o amor. Pára de tentar perceber. Pára de pensar.assim, sem mais. simplesmente.


*Ana Goês

Soneto do amor total

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes
[para uma antologia de poemas de amor II]

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Monólogo de um homem incerto

Posso não conquistar nada. Sim, essa é uma possibilidade presente. Posso falhar. Há algo de abrupto na palavra falhar. Aliás, que eu saiba, em Portugal falhar não é um verbo muito utilizado. Bom, sempre se falham os quantos golos. Mas na vida, aí ninguém falha. Vamos indo. Para onde, ninguém diz. Porra, como me irrita que existam dez milhões de pessoas no mundo sempre em risco de quase existirem, sempre à porta de qualquer coisa grande, mas que não falham, nunca. O segredo é nunca tentar. Nunca ousar, nunca mandar tudo à merda e ir. Ir por a aí. Com fúria. Nós vamos indo, imóveis. E esta merda cola-se-nos ao corpo (esta frase se não é tua está lá perto). Este fim de semana li sobre a possibilidade de não termos encontrado ainda o vocabulário para o amor, para o sexo mesmo. Num texto de Inês Pedrosa, salvo o erro. Falava-se de Maria Teresa Horta, a obviamente excluída. Que isto das mulheres gostarem de sexo ainda faz confusão a muitos homens, e, extraordinariamente, a muitas mulheres também. Eu por mim, sinto-me tentado a deitar fora anos, séculos, inteiros de cultura. Que se foda a cultura. Vivam as árvores. De preferência quando imóveis, estendidas ao sol, num jardim de Maio, ramos erguidos para o céu e sobretudo...

...cá entre nós, sobretudo a terra, as mãos cheias de terra, os pés descalços numa poça de lama depois da rega.

Sou instintivamente a favor das vinhas e contra os campos de golfe. Isto da cultura sensitiva, do silêncio, do anti-stress, deixa-me nervoso. É que depois há tanta gente a olhar para o lado tentando descobrir o que os outros pensam deles que nunca chegamos a saber se eles vivem.

Que isto de viver, para que saibam, é uma coisa muito nossa.

Do que eu gosto é da terra (e a propósito, da palavra terra também gosto muito) e dos corpos. Como em: cravou as unhas nas costas dele. Parece literatura de cordel, para vender em bancas de jornais.

Isto de falhar provoca ansiedade. Porque, digo eu, não podemos tomar nada por garantido. Uma espécie de dúvida metódica. Eu existo? O que é existir? E por aí adiante...

Escrever é outra coisa. Diz-se que é fugir do entendimento possível. Adoro estas frases equívocas. Aliás tenho uma preferência por frases e mulheres equívocas. Para ser sincero, por tudo que é equívoco. Este texto, por exemplo.

Raramente pensamos que a liberdade é uma coisa assim: dá um trabalho do caraças não deixar que de todo o lado nos cortem os movimentos, ou, na realidade, as asas. Raramente pensamos que a liberdade é aquela coisa que transaccionamos no mercado das emoções. Lá está, equívoco outra vez.

De regresso. Tenho um medo do caraças de falhar, falhar completamente. Tipo: imaginem que são o Álvaro Cunhal, a vida toda naquela luta e depois, um dia, por muito que nunca o admitamos em público, descobrimos que nada fazia sentido. Lá temos que seguir em frente, mentindo a nós próprios. É fodido, digo-vos que deve ser tremendamente fodido. Imaginem que é tão mau que ainda aturam gajos como eu, que nunca fizeram nada da vida, que têm tudo tão dado, tão caído do céu, que qualquer dia são eleitores do BE só para fingir que protestam. Imaginem gajos desses a dar-vos lições de moral. Mural, no caso de preferirem o pctp-mrrp.

É fodido, digo-vos, isto de tentar é fodido. Podemos sempre falhar.

Eu por mim, tenho medo que o amor seja como preencher uma declaração de IRS. Assim mesmo, como ela disse, e acertou em cheio. Um medo enorme, um medo do caraças.

Por estas e por outras vamos tentando. Sob a frase de Bataille... para não esquecer.

para ensinar o olhar

Uma camisola vermelha, perdida,
desperdiçada de um corpo,
caída no cimento insensível da rua.
conta uma história:

Uma mulher, caminha,
fim de tarde suburbano,
entre prédios amarelos
refulgentes de tinta nova
e céu mediterrâneo.

A certa altura pára,
alertada pelo som agudo,
de uma voz de criança que
chora.

Olha em volta,
a íris aumenta
confrontando a luz forte
da tarde.

Encontra a criança encostada
a um contentor de lixo,
vermelha, suja.
Desprovida – pensa.

Caminha até ela,
chora também, agora,
estende a mão e pergunta:
O que tens? Estás perdida?

A criança responde que o
seu lugar, ensinaram-lhe,
é ali.
Espera que regressem a casa
e a levem.
Os pais, os irmãos, ou lá
o que é.

Então a mulher despe a camisola,
porque sente calor,
deixa-a encostada ao contentor,
e senta-se também a esperar.

Conversam as duas:
que idade tens?
vamos brincar?
Outras coisas...

A camisola fica,
depois de as duas partirem,
entre gritos recíprocos dos
feios habitantes da história da menina
e da mulher que passava e parou.

A camisola não interessa nada.
É tudo que vemos.

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

memórias de um quotidiano invencível [1]

primeiro. msn lembrando que criamos raízes longe de casa e que só assim ganhamos a água para sobreviver. o telemóvel fica sem bateria quando ia completar a resposta. procuro o outro mas não o encontro.
segundo. fafe. saio do carro, vou ao parquímetro e volto, uma bola azul caí do céu directamente sobre a minha cabeça. uns miúdos em cima de um muro pedem que lhes devolva a bola. chamam-me senhor. sinto-me velho, mas penso que tendo em conta que os pais deles devem ter mais ao menos a minha idade faz sentido que me tratem assim.
terceiro. ainda fafe. um homem bem no centro da cidade canta Mr. Tambourine Man. um drogado que passa segue cantando, com um sorriso de ironia no rosto.
quarto. guimarães. o sino da igreja das dominicas toca o hino à alegria. não faço ideia porquê.
quinto. regresso ao local e encontro o telemóvel no mesmo local onde caiu. intacto.

Para manter a distância fértil

Escrevo para que o silêncio recolha o que não
posso alcançar
e na distância intacta estremeçam as pétalas
de uma rosa abolida, de uma rosa fértil.
Que da inextricável rede dos gestos virtuais
se separe aquele que oferece e apaga
o seu percurso abrindo o horizonte de um segredo
incomunicável. É esse o caminho do corpo para o mundo
e o caminho é a pedra em que ensaio o voo branco
a minuciosa pedra feita de signos vazios e extintos fogos.
Mas nela perpassa o grávido desejo na sua urgência alta
e a pedra volve-se cantaria fértil, roseira ardente,
a nascente branca em que o mundo recomeça
com os fugidios talismãs e os frescos sortilégios
que logo se extinguem na dispersão da noite.
O que resta ainda é o perfume do abismo
sobre um teclado vazio
ou um calhau polido
pela fresca violência da ressaca.

António Ramos Rosa

domingo, fevereiro 13, 2005

Monólogo

À força de tanto ter esperança, concedo, em cada dia, mais um centímetro ao desespero. Esta merda complica-se.

…apetece-me morrer…morrer, é isso.

Bom, não é bem isso. Percebes? Queria que me explicassem se existe um lugar onde os nossos pés podem assentar directamente no chão. Existe?
Estou farta de flutuar como uma pluma alada. Preciso que me agarrem. Esta merda pode durar para sempre, não pode?

Foto: TheFotoFinder

Nas imediações da felicidade, um homem pensativo

Ele chega perto da casa azul, a sede da Felicidade, SA, traz consigo a chave e um guarda-chuva amarelo. Não que espere chuva, não espera, mas o traje foi exigido, guarda-chuva incluído. Aproxima-se. Pára no centro da luz do único candeeiro da rua, espera. Olha o guarda-chuva e não pode deixar de se sentir ridículo. Por sorte um pinguim atravessa nesse momento a rua e aproxima-se. Cumprimenta: boa noite meu caro senhor. Depois de responder e de o pinguim se ter afastado o homem pensa: estes pinguins são sempre muito bem-educados. Continua à espera de um sinal da Felicidade, SA. Enquanto isso pensa: agora que estou aqui tão perto não devo desesperar. Afinal ainda ontem comprei um pedaço de fita azul e sempre posso usá-la para fazer um laço assim que chegue a casa. Talvez a senhoria não dê por nada. De resto de nada lhe serve pensar. Olha a casa, a Felicidade, SA, e, para sua surpresa, começa a chover. Num gesto rápido abre o guarda-chuva amarelo e pensa: ainda bem que exigiram que trouxesse comigo este guarda-chuva amarelo. Do outro lado da rua passa uma mulher, uma prostituta com escafandro, disfarçada de mergulhador. Na casa azul nem uma luz, ele pensa em ir embora. Afinal está a chover e pode ser que alguém o veja ali, no meio da rua, a pingar, e amanhã no escritório toda a gente o iria gozar. No momento em que se prepara para ir toca o telemóvel. - Sim? Lamentamos informá-lo, que devido a falhas no sistema informático, o seu encontro desta noite foi adiado. A Felicidade, SA, contactará consigo, em breve, para marcar uma nova data. Obrigado.

Estranha ficção

Leio na Actual do Expresso da semana passada (leituras atrasadas):
Dentro de pouco tempo, quando todos estivermos mortos (…)
Já ninguém poderá atrever-se a descrever o que foram as enfermarias dos campos, os barracões de inválidos, a tentar fazer compreender, a sugerir, pelo menos, o que foi o cheiro dos fornos crematórios, daquelas nuvens de impalpáveis cinzas sobre os campos da Polónia e da Alemanha. (…)
Mas, se não há memória de verdade, vivaz e verídica, quem contará às novas gerações, às dos nossos netos, aquela história? Quem transmitirá essa memória? A única possibilidade de que isso ocorra é que a ficção narrativa se apodere desta matéria histórica. (…) Jorge Semprún


Fico a pensar: essa ficção parece hoje impossível, impúdica, mas é, necessariamente, no interior das palavras ficcionais que se encontrará a fórmula que permita dizer do horror de um tempo assim. Como acontece muitas vezes, a ficção terá que ser o intermediário entre a história e o nosso sentimento, para que no futuro, não apenas se perceba, mas se chegue o mais perto possível de sentir, essa absurda loucura humana. Mas será que existem palavras para uma tão estranha ficção?

sábado, fevereiro 12, 2005

elucidação

este blog, passeando entre diferentes nomes, existe desde junho de 2003. muito tempo, portanto. julgava já não ser necessário explicações simples como a que se segue, mas, pelos vistos, ainda é. o que escrevo aqui não é, de todo, destinado a alguém (a não ser nas pequenas excepções em que o refiro ou, mais raramente, o digo à pessoa sobre quem se escreve) em todos os outros casos são textos sem destinatário e sem fonte, para além da óbvia: a memória. uma memória truncada, cheia de vestígios, em reconstrução, nunca uma memória exacta: porque isto não é, necessariamente, um espelho fiel da minha vida. não é, não quer ser, nunca será. para quem o confunde, para quem insiste em supor que é o epicentro da minha vida, ou da minha memória, aconselho apenas que deixem de me dar importância, ou, sendo mais vulgar e mas mais exacto: desapareçam, evaporem-se.

[peço desculpa por este post–interrupção-da-emissão-normal, ele é destinado apenas ao autor/a de um comentário (que apaguei) ao post anterior]

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

C de corpo [tatuado no corpo]

Ainda guardo vestígios dos teus seios
nos meus dedos
e o perfume do teu corpo
na eterna memória do
meu respirar.

Ainda vejo com o brilho
com que, no passado, os
meus olhos reflectiram
o azul dos teus.

Ainda sonho a tua voz,
sussurrando ao meu ouvido,
coisas da existência da
palavra: amor.

Ainda guardo, como uma obsessão,
o sabor do teu sexo na minha
língua.

[Do rosto e da memória. Dos sentidos. Das palavras. 1ª abordagem a uma letra de carne]

Elogio do pecado

Ela é uma mulher que goza
celestial sublime
isso a torna perigosa
e você não pode nada contra o crime
dela ser uma mulher que goza

você pode persegui-la, ameaçá-la
tachá-la, matá-la se quiser
retalhar seu corpo, deixá-lo exposto
pra servir de exemplo.
É inútil. Ela agora pode resistir
ao mais feroz dos tempos
à ira, ao pior julgamento
repara, ela renasce e brota
nova rosa

Atravessou a história
foi queimada viva, acusada
desceu ao fundo dos infernos
e já não teme nada
retorna inteira, maior, mais larga
absolutamente poderosa.

Bruna Lombardi

Sob o signo da inquietação

O susto em nós foi avançar
muito para dentro do proibido.
Muito para perto de uma zona perigosa
A boca da noite... o desconhecido...
Vagos caminhos de uma via nebulosa.
Vários conceitos para falar da mesma coisa
O susto em nós foi descobrir porteiras
de territórios nunca antes percorridos
No fundo de todos nós um visitante
No fundo, a falta de sentido...

Visitantes de nós mesmos cometíamos
a imprudência de quase enlouquecer
Para chegar à compreensão.
E uma coisa afiada nos conduzia
através da trilha da poesia
e do difícil trajeto da paixão....

Bruna Lombardi

Almada

"Eu queria gostar das revistas e das coisas que não prestam
porque são muitas mais que as boas
e enche-se o tempo mais!
Eu queria, como tu, sentir o bem-estar
que te dá a bestialidade!
Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher,
e sem o prazer de seres inteligente pessoalmente!"

Auto-retrato (1943
A Cena do Ódio, Excerto

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

B de balbuciar

a minha voz desentende-se no mínimo trajecto entre os corpos. precisa da tradução simultânea de um gesto, um olhar. antes que te perca, digo-te: anda cá. abraço-te.
entendem o complemento do gesto e da palavra? digam: a-m-o-t-e. e percam-se. sobretudo isso. deslizem pela noite dentro, leves, desamparados, e percebam, antes que a morte vos desampare a queda, que a palavra se diz, ainda, do mesmo antiquíssimo modo.

Alexandra Alpha [1]


"Porque, é dos livros e dos amantes, só um corpo sem memória se mantém curioso e disponível, só ele corre em à-vontade para as tentações do abismo."


in Alexandra Alpha, José Cardoso Pires
foto: Edward Weston

domingo, fevereiro 06, 2005

sur real

o espaço do sonho ou da fuga. lá, algures no sul do sul do mundo. perdido. imaginariamente longe. mas um dia li: “o deserto é um lugar onde há muita gente.” e deixei de sonhar.
poderia ter sangrado estas palavras. a meio de uma rua vazia. a um passo de um buraco enorme cavado na rocha. porque esta sabedoria entranha-se na nossa pele, corrói, apodrece, dentro de nós, como um cancro.

*a meu favor tenho o teu olhar*

Encontro de duas mãos
que procuram estrelas,
nas entranhas da noite!
Juan Ramón Jiménez


num qualquer julgamento terrível em que me acusem de um dos inúmeros crimes que, estou certo, cometi, a minha única testemunha será o teu olhar.
**não, não estou a enlouquecer**
mas é como **se repentinamente
a infância me doesse a meio da oceânica noite,**
e eu acordasse a tremer de frio, na escuridão de um quarto que nunca aprendi a reconhecer como meu, e repetisse vezes sem conta um nome a propósito da identidade. talvez me perdesse.
***como se nessas avessas da pele me acontecesse um outro significado. nomeio. e do corpo que vou esticando entre um nome e outro o mistério acontece.
este é o lugar da palavra.***
apenas acrescento aos dias esta existência de papel.
**atravessamos a vida com o nome do medo
e o consolo de algum vinho que nos sustém
a urgência de escrever
não se sabe para quem**
acontece haver um medo que detém as palavras
a meio de nada.
um receio de que o mudo não exista.
utopia.
***mas hoje é o dia em que todas as coisas
falam.***
e eu sussurro. a meio das palavras.
ainda.

**Nomeio constelações uso-as
Para me guiarem no receio das noites**
um novo começo.

**sei que continuarei vivo no epicentro das flores**


eu, *M. A. Pina*, **Al Berto**, ***Blimunda*** - nomeando constelações.

post it

a actualização dos links fica para amanhã

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

As tormentas

Não conhecia este site. Gostei. Muito.

para uma antologia de poemas de amor

Desmayarse, atreverse, estar furioso,
áspero, tierno, liberal, esquivo,
alentado, mortal, difunto, vivo,
leal, traidor, cobarde y animoso:

no hallar fuera del bien centro y reposo,
mostrarse alegre, triste, humilde, altivo,
enojado, valiente, fugitivo,
satisfecho, ofendido, receloso:

huir el rostro al claro desengaño,
beber veneno por licor süave,
olvidar el provecho, amar el daño:

creer que el cielo en un infierno cabe;
dar la vida y el alma a un desengaño,
¡esto es amor! quien lo probó lo sabe.

Lope de Vega

[quien lo probó lo sabe.]

Aqui, neste preciso lugar

Aqui, neste preciso lugar,
existe um poema que não escrevi.
Precisamente porque do incomensurável
apenas entrevejo um breve trecho,
e das minhas lágrimas recebo,
à força de ter esperança,
um sorriso.

O poema não existe, este é o seu lugar.

Vamos fingir: a liberdade

um dia gostava de ser livre
para foder
o rapaz da pastelaria
em cima do balcão.
havia de ser livre, então.
porque a liberdade
tem assim,
algo de esperma
e confusão.
ou não?


o texto, este, devia começar assim: tenho medo. aviso que seria ironia, mas certamente ninguém saberia. o medo não seria metáfora. nem sei o que é isso: o medo metáfora. seria real. a ironia estaria em existir. percebo que não o façam. nem sempre o que temos para escrever se coaduna com a leitura. desculpem, não percam mais tempo.
gosto da palavra “talvez”. apaixonadamente. Ela é toda a ciência que tenho. experimentem ler cada sílaba, será mais fácil. porque é assim que eu escrevo, hoje. a-ssim, len-ta-men-te.
o que queria dizer, mas desde já digo que não o faço, era uma coisa sobre a liberdade. como na frase: “gostava de ser livre para foder o rapaz da pastelaria em cima do balcão”. chiu….falem baixinho. é, seria ironia, outra vez. mas com tanta violência verbal, ironia? pois.
regressando ao frio do raciocínio: estarei a dizer precisamente isso?


[ou implicitamente digo: acabam de o pensar, eis a ironia.]


[o que se escreve neste post ameaça permanecer guardado algures no lugar nenhum, vazio, em lugar da tempestade metafórica e na persistentemente resignada sensibilidade pós-moderna, assim mesmo: com pontuação breve, sem explicação e cumprindo uma promessa feita a um amigo que morreu, solidariamente, antes de escrever]

terça-feira, fevereiro 01, 2005

A de anterior

Como se a escrita fosse apenas um reatamento desses minutos de outrora, um reflexo de uma desancorada esperança. um mundo cheio de visitações de um deus menino…homem...cadáver.
há, ainda hoje, um cheiro a pão torrado misturado com o aroma do café com leite e o som de um sino invocando o dever. tudo isso implícito neste sentimento antigo de que o mundo é incapaz de resistir à força do vento que sopra. sempre tive medo que os outros me deixassem, ou que eu partisse. tanto faz. outra coisa, nunca soube dizer: amo-te. pensei sempre que isso estivesse implícito, algures na melancolia dos gestos. é desse tempo, imensurável, que vem esta escrita. nasceu silenciosa. viveu adormecida por entre divagações no corpo de uma mulher. mas essa voz, hesitante, percorreu o longo caminho, codificando um sub-texto de medo. como nos sonhos vividos de criança, em que o mundo todo desaparece e, estranha esperança, nos compete a nós, solitário Adão, reconstruir tudo a partir do nada. estas palavras, segredo-vos, são assim: a lentíssima construção de um abrigo.

++++