sublinhar

quarta-feira, março 31, 2004

American Beauty

Só para matar o tempo

Por vezes fico assim pensativo, olhando as palavras e perguntando-me o que é que elas dizem. Por exemplo, se escrevo: medo; procuro e encontro um medo lá atrás, dentro de mim portanto. Mas ele não existe porque há palavra, quanto muito encontro-o porque há palavra, porque está escrita, porque leio. E se me leio, encontro-me? Que desconhecido sou eu de mim próprio? Conheço-me dentro dos limites estabelecidos por mim. Limites? – Perguntam. E eu não respondo, ou melhor respondo, digo: procurem. Mas não procurem em mim porque não me conhecem, procurem em vós. Divertimento nenhum, mas entretém. E o tempo passa, devagar, ou depressa, o tempo passa sempre. Podem até experimentar escrever. Sim, escrever. Muitas palavras, ou poucas palavras, mas não pensem muito. Na verdade, se quiserem, podem pensar as palavras antes de as escrever, até aconselho a reler antes de mostrar a alguém. Eu isso não faço. Sentir-me-ia absurdo corrigindo-me. E afinal, absurdo é não me corrigir. Que erros são esses? – Pergunto-me. Criar uma tristeza… – Respondo-me. E este diálogo lembra-me que está quase na hora de me sentar no sofá, ver um filme, permanecer calado…
Sim, era este o momento em que parava de escrever, mas algo me impede. Esse algo é o trivial estar gente na sala onde vou ver o filme, e por isso permaneço aqui. E escrevo sem sentido, sorrindo ao escrever, esperando vagamente, que algo de essencial em mim tombe sobre esta folha, para que eu grite: encontrei-me.

Chamam-lhe futuro

A essa ideia vaga, construída de sonhos, essa vida outra cheia de vidas diferentes que nunca serão. Esse amanhã, essa outra luz tão diferente deste dia de chuva. Esses sonhos projectados, esses planos desenhados a regra e esquadro na areia do presente. Uma onda que chega e que leva tudo. E outro futuro se desenha, se projecta com ânsia. Ou então uma ideia de nada, uma espera tranquila de nada, um olhar sereno para o que vier. Isso é também um plano, um plano de futuro, uma ideia entrevista nas nuvens, e que o vento leva, leva, para longe. Mas é bom saber que o futuro acontecerá, perto dos planos desenhados com carinho, longe de tudo que foi pensado. O futuro acontece sempre, e surpreende-nos sempre. Apenas temos que nos deixar surpreender.

Chamam-lhe presente

Chamam-lhe presente, e dizem que ele é agora. Sempre agora, este instante, que vive confundido com o passado e com o futuro numa luta instintiva para também ser. Chamam-lhe presente, e ele é apenas quando o deixam ser, quando não o confundem com esse passado e com esse futuro. Ele é tão belo, cheio de luz, cor, prazer. E apenas permite sonhar, nunca ser sonhado. Chamam-lhe presente, deixem-no apenas ser.

Chamam-lhe passado

Conhecido, entrevisto, desconhecido também. Que contraditória matéria esta da qual crescemos e que sempre presente nos diz: sofremos. Diz também das alegrias, dos sonhos já corrompidos, já distraídos, esquecidos. Essa memória que nos faz, onde começamos e não acabamos. Chamam-lhe passado, a essa realidade indistinta, todos os dias acrescida, modificada, construída. Chamam-lhe passado e dizem: já passou. E como se enganam. Ele vive onde nós vivemos, cresce onde nós sofremos, mas alimenta-se dos sorrisos também. Depende de nós lembra-lo onde e quando deve ser lembrado, e nos outros momentos esquecê-lo.

Pelos labirintos do sentimento

Um começo de tarde de chuva, esta tarde, um olhar que olha em volta procurando. E um sentimento de que tudo se desenrola com um vagar qualquer, uma lentidão inumana, uma dor inscrita no futuro.
Outro começo da tarde, de sol, lembro as palavras. São sempre as palavras. Tu, de pé, diante da porta da minha casa. Sorris. Que bonito sorriso. Lembro-te agora, porque te vi hoje e porque não tenho saudades tuas inscritas em chama no meu corpo. Porque agora és apenas memória querida para viver em momentos como este, em que um carro passa, a chuva cai, uma pessoa anda apressada com um guarda-chuva, e eu escrevo, sinto, tranquilo.
Outra tarde ainda, agora um fim de tarde, não anoitece porque é verão e foi decretada pelo governo a luz geral até às 10 da noite. Já se passaram alguns anos. Esta outra memória-sentimento que guardo. Uma face semi-escondida dos outros. Mais algumas palavras, sempre as palavras. Encaravas a possibilidade de matar. Nunca o fizeste. Que sofrimento isso te causou?
Estes sentimentos, do passado, no passado, aqui, agora, lembram-me que a razão está também destituída de razão. E que o sentimento é um triunfo-qualquer sobre coisa-nenhuma.

terça-feira, março 30, 2004

32. [Diário...]

Mais um texto longo, o mesmo assunto
Parado que penso. Parado que desisto. E caminho se caminho este percurso, subo estes degraus e esqueço-me de mim até despertar. E outro sono é este dia que acorda, acordo eu, acorda o dia e tu nem sentes, porque é demasiado a dor que tens, só de lágrimas vês o mundo em teu redor. Eu conheço-te, olho-te e estranho-te. E choro contigo, eu aqui e tu lá, aí. Agora que esta noite, definitiva noite, dizem que eterna a noite, nasce deste dia, este dia tão igual a outros dias. E que memória. Este presente. Este angustiado presente. A incerteza. Chamam-lhe esperança raiada de desespero. Chamem-lhe o que chamarem. Eu creio. Por ti eu queria crer. Mas descrente que sou, escrevo estas palavras em que te vivo. Tu és um ser vivente em mim para sempre. Tu és, serás. A ti conjugo-te sempre no futuro, eu sou tanto o que tu és. Sou tanto de ti. Uma parte de ti. Sou, essa parte de ti. E tu és também em mim. Sempre. Que partas, que sofras, que desistas ou tenhas esperança. Que tenhas força, que eu te dê a força que precisas, que tenhamos isto juntos. Como sempre estivemos, juntos. Esqueci-me de te dizer mais vezes as palavras que têm que ser ditas mais vezes, mas que esquecemos, porque é fácil confiar na eternidade. E esta morte que entra, alardeando a sua força, não te conhece, mas quer-te. Nós, todos nós, tu. O medo, este medo, o teu medo. Este frio, o teu frio. Que frio diferente de todo o outro frio. Esse frio que não sei como se sente. Esse frio longe de tudo, diferente de tudo. Esse frio. Chamam-lhe frio raiado de eternidade. Mas que me importa o que lhe chamam, eu chamo por ti, agarro-me a ti, e tu agarras-te a nós. Tudo que somos se resume a este abraço. Chamam-lhe o abraço trágico do desespero. A estas lágrimas que rolam incontidas, chamam-lhes as lágrimas matéria do fim. Mas a mim que me importa o que lhes chamam. Eu chamo, eu clamo, apenas por ti.

Pelos labirintos da razão

Um começo de tarde numa primavera de chuva igual a esta, um brilhar ténue do sol, uma angústia qualquer, e um salto imaginado para o nada. Um ligeiro movimento. Uma cínica resposta. E é tudo. Sofrimento nenhum resiste a um apelo cínico da razão.
Outro começo, uma tarde, também de chuva, agora uma tarde de Outono, relembro o guarda-chuva e uma voz. Palavras. Tanto tempo, outras águas, e tu de novo aqui, imagem recorrente, de conforto, ideia utópica. Mas nenhuma ideia utópica resiste a um apelo cínico da razão.
Ainda outro começo, chove também e há uma morte, e um riso, uma lágrima, falta de entendimento nosso. Ainda me lembro de ti naquela tarde, memória de tantos anos. A nossa descoberta do fim. Mas uma outra experiência inicial veio explicar que também nenhuma morte resiste a um apelo cínico da razão.

Encontros

Fui agora tomar café ali ao outro lado da rua e nesse breve trajecto encontrei um funcionário do local onde estagiei em 2002, e não sei bem porquê lembrei-me desta música:

Making your way in the world today
takes everything you've got.
Taking a break from all your worries,
sure would help a lot.
Wouldn't you like to get away?

Sometimes you want to go
Where everybody knows your name,
and they're always glad you came.
(...)

Poemeto

Soltas as amarras do passado,
o barco desliza livre e singular,
sulcando a imensidão azul do mar,
lendo nas estrelas o seu roteiro.

E enquanto houver no céu esse brilhar
impedindo o barco de se perder
qualquer destino, todo o porvir,
pode ser o lugar certo para aportar.

segunda-feira, março 29, 2004

The Shipping News

31. [Diário...]

Durante 26 anos estiveste sempre aqui, comigo, ao meu lado. Nunca questionei que te teria para sempre comigo: silencioso, mas ao meu lado, apoiando-me. Tivemos inúmeras discussões sobre coisas importantes e sobre coisas de nada. Agora nenhum dos dois tem forças para discutir e aguardamos em silêncio. Queria dizer-te que te amo, dizer-te com palavras mas fico calado. Estabelecemos este silêncio entre nós, coisa de homens, e agora lamento-o. Tu também o lamentas. Tu também sabes, também sentes essa incapacidade da palavra. Digo-te que te amo olhando para ti, e tu sabes que te amo, e respondes-me da mesma forma e dizes: amo-te também. Somos diferentes, muito diferentes, talvez essa diferença seja um espinho cravado entre nós. Talvez por isso, agora que o tempo falta, e nós dois choramos, eu continue incapaz de falar. E escrevo aqui, onde sei que nunca vais ler. Escrevo para construir um abrigo do medo, da saudade inscrita no futuro. Também tenho medo por ti, por saber que sofres por partires para longe de nós. Sofres muito, sofres mais do aquilo que posso ver, e por isso às vezes me escondo. Depois volto, sorrio, digo coisas alegres porque é assim que eu sou. Mas tu agora só raramente ris comigo. Eu compreendo-te. Também isso é saudade antecipada. Eu tento-me convencer a ter esperança, mas sei demasiado, toda a gente me julga forte e me conta tudo. Aparentemente elegeram-me como pilar, na tua ausência, e pedem que segure o mundo em que vivemos. Não sei se consigo, tento, tento muito. Mas à noite quando estou sozinho tenho medo, choro, sinto-me como uma criança sozinha no escuro. Não consigo ver nem compreender nada. Sim, tenho medo. Amanhã é outro dia, e sei que estão à espera que eu continue sorrindo, mesmo agora que sabem que também outras coisas me fazem triste, esperam que eu continue sorrindo. Esperam que eu continue aqui e continue sorrindo. Eu dou-vos esse sorriso com a facilidade com que vos amo. Mas quase choro quando vejo os esforços que fazes para me preservar da dor, tentas esconder de mim a dor que sentes apenas para que eu não sofra. Continuas o meu ..., continuas tu. E tenho uma vontade urgente de te dizer: Amo-te, para sempre.

Caminho

Não sei se sou capaz de construir caminhos nas margens do silêncio. Não sei se tenho essa sabedoria. Por agora desejo as palavras, desejo demasiado eu sei. Talvez aprenda contigo, por ti, o silêncio.

Hoje, acordei tarde, depois de uma noite mal dormida, sentindo que é impossível para mim não gostar de ti, ter carinho por ti. Acordei e a luz fez-me sentir que se temos o sol e a chuva, as árvores e as pedras, os rios e as montanhas, se temos isso temos tudo, muito pouco tudo. Muito se o tudo for escoltado de uma esperança-qualquer-de-algo.

Vai até onde fores, leva um pedacinho de mim contigo, e um dia diz-me: Olá, ainda me lembro de ti.

#

Primavera

Não quero que a minha sombra impeça o renascimento da flor.

~

Nenhuma palavra...toda a tristeza.

domingo, março 28, 2004

30. [Diário...]

Queria ser directo, e explicar-te tudo o que sinto, mas não consigo. Perdi as palavras, confundo-me na sua sabedoria, e esqueço-me de mim durante o processo de escrever. Mesmo agora, em que não escrevo nada para além do que sinto neste momento, tudo me parece insuficiente. Queria dizer-te, já te disse, repito, que não posso esquecer-te assim. Talvez fosse mais fácil inventar-te defeitos, inventar um ódio por ti, mas não te encontro defeitos relevantes nem te odeio. Antes te lembro, sem mágoa, ou com um pouco de mágoa diluída na beleza de tu existires. Sim, porque tu existires é por si só um acto belo, uma verdadeira proeza da criação, da natureza. Tu existires como és, como eu amei (amo ainda, tu sabes isso) é uma conquista da alegria sobre a tristeza. Ou uma conquista da minha alegria sobre a minha tristeza.

Paisagem Útil

É de manhã
Vem o sol, mas os pingos da chuva
Que ontem caiu
Ainda estão a brilhar
Ainda estão da dançar
Ao vento alegre
Que me traz esta canção

Quero que você me dê a mão
Vamos sair, por aí
Sem pensar no que foi que sonhei
Que chorei, que sofri
Pois a nova manhã
Já me fez esquecer
Me dê a mão vamos sairprá ver o sol.
Estrada do Sol - Tom Jobim e Dolores Duran

Paisagem Inútil

Mas pra quê,
Pra quê tanto céu,
Pra quê tanto mar,pra quê
De que serve esta onda que quebra e
No vento da tarde
De que serve a tarde,
Inútil paisagem.

Pode ser que nao venhas mais,
Que nao venhas nunca mais
De que servem as flores que nascem
Pelo caminho
Se o meu caminho, sozinho
É nada
Inútil Paisagem - Tom Jobim e Aloísio de Oliveira

29. [Diário...]

Não, não rejeito esse futuro que desenhaste com cuidado, e no qual me incluis como figura atravessando a noite. Não, não rejeito a ideia de pertencer também à tua memória dos dias. Não, não rejeito a tua ternura, o teu olhar para mim. Não rejeito nada disso mas quero mais. Quero ouvir-te, estar contigo. Dizer-te que choro por estares triste tanto quanto choro por eu estar triste. Dizer-te: Gosto de ti. Gosto de conversar contigo. Gosto de saber como estás e o que sentes. Gosto da partilha. Por isso digo: não vás para muito longe. Nunca.

Hoje estou...

nocturno.

sábado, março 27, 2004

28. [Diário...]

Não consinto que me coloques numa prateleira do passado, que me guardes numa prateleira poeirenta e que me revejas apenas quando uma saudade qualquer se acerque de ti. Não consinto que qualquer motivo te impeça de me chamar quando a tristeza invadir o mundo que tanto preservas.
Sabes o que penso? Que não podemos ser politicamente correctos quanto a isto. Não nós. Não podemos agir como toda a gente e esperar esquecer, ou querer esquecer até.
Fui feliz contigo, tu também foste feliz comigo, sei que não tanto mas foste. Aquilo que partilhamos, aquilo que verdadeiramente partilhamos, ao longe, mas de uma força inquebrantável, não pode ser agora só memória. Onde isso nos deixaria?
Não penses que eu quero que me ames. Quero que sejas feliz, quero que continues a procurar a pessoa que te fará mesmo feliz, quero que encontres essa pessoa. É isso que quero. Mas também quero saber que se um dia te perderes nos labirintos da tua tristeza vais chamar por mim. Mas chamar mesmo, falar comigo.
Quero que saibas que eu não suporto a tua tristeza.

27. [Diário...]

É noite, eu choro. Mas não, não é essa noite fim de tudo que imaginei. Lembro-me. Lembro-me de ti. Lembro-me de nós. Sim, é certo que paro de escrever para chorar, ou que uma música na rádio me faz ficar parado, e chorar outra vez. É verdade, sim é verdade, que passo muito tempo sem saber que destino, que passos dar, e para onde. Sim, é verdade que ainda tenho a vontade de caminhar para ti, voar até ti.
Mas também sei, também é verdade, que existem outros caminhos, não o sinto, isso eu não consigo ainda, mas sei. Tenho que saber, porque se não existe felicidade então para quê lutar?
E não posso deixar de lutar, não posso morrer. Ainda não.

26. [Diário...]

Porque é outra vez tempo de escrever depressa, sem pensar muito as palavras, falando-me, sentindo-me, regresso a este lugar nocturno.

Coração Vagabundo

Meu coração não se cansa de ter esperança
de um dia ser tudo o que quer.

Meu coração de criança
não és só a lembrança
de um vulto feliz de mulher

que passou por meu sonho
sem dizer adeus
e fez dos olhos meus um chorar mais sem fim

Meu coração vagabundo
quer guardar o mundo em mim.
Caetano Veloso

Drawing lines, why?

Ally: "Billy. You know what I said before about drawing lines?
I´ve thinking a lot about... We say we're friends like it's a consolation prize... the truth... for me... it's that our friendship is the greatest thing I got going. I cherish it. I don't to put honesty boundaries on it."
Billy: "Me neither.
So?"
Ally: "Free fall with the truth. Hope we both survive. Deal?"

(O meu) Anti-depressivo

quinta-feira, março 25, 2004

A noite

A noite. Talvez durma, talvez fique sentado pensando, repensando, sofrendo. Sei que se me deitar irei acordar várias vezes durante a noite, e de manhã irei acordar cansado, irei ter lágrimas nos olhos assim que os abrir. Mais um dia, direi então. É isso mesmo: mais um dia apenas. Um dia que não será, não pode ser, um regresso, uma repetição do passado. O que existiu não se esquece. Mas o futuro é sempre um lugar aberto, onde nenhuma dor, nenhuma memória de uma noite, nos impede de viver. Não se trata de viver outra vez mas sim de viver de novo. É isso, viver de novo. Não exactamente o mesmo, mas outra coisa qualquer, parecida, maior, ou então outra coisa qualquer-diferente. Mas isso, não sou eu que posso decidir, sei apenas o que sinto... tu também sabes.

quarta-feira, março 24, 2004

Bragança

É raro ir a um sítio e ficar com vontade de debitar uma série de lugares comuns, mas no caso de Bragança tenho que o fazer, porque são todos verdade. A cidade é muito bonita, as pessoas são muitíssimo simpáticas e a gastronomia parece inventada para me agradar.
O único factor negativo foi ter ido em trabalho e não ter tido tempo para reencontrar alguns amigos da universidade. Isso só na próxima vez, que será em breve, felizmente.

terça-feira, março 23, 2004

Dormir

Assumo que preferia dormir. Preferia dormir a chorar, preferia dormir a acordar de hora a hora, apavorado, relembrando, ou imaginando, vendo-te desaparecer. Admito que preferia apenas dormir, que gostava de acordar sem os olhos inchados. Preferia conseguir ler isto que escrevo sem esta névoa que existe entre mim e as palavras. Mas o que tenho são estas lágrimas, às vezes penso que são lágrimas que te torturam desnecessariamente, lágrimas que te fazem triste. E choro ainda mais por não poder te mostrar o meu sorriso.
E depois tudo isto é pessoal demais, dor a mais. Quem lê obviamente foge de tanta dor. Há uns dias eu próprio fugiria de mim, deste eu. Mas se não escrevo instala-se o silêncio. Esse silêncio tão parecido com a morte.

sob pressão

É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.
Carlos Drummond de Andrade

"Roubado" aqui

Esquece aquele silêncio porque ele não existe mais.

Não deixes entrar o silêncio pela porta entreaberta do teu quarto. Aquele silêncio que conhecias não existe mais, não pode existir, porque eu falo contigo a cada minuto, porque eu choro por ti, porque te quero, agora assim, depois de outra forma qualquer.
Uma vez disse-te que estar contigo compensava todas as lágrimas futuras, e é verdade. Embora agora eu não o consiga perceber, é verdade. Embora por agora apenas sinta a dor, é verdade.

Vou ali morrer...

e já volto.

domingo, março 21, 2004

Memória

Lembro-me. Na memória reside para mim toda a nossa humanidade. Sem ela somos bichos, capazes de espectaculares proezas físicas mas nada para além disso. Lembro então. Incessantemente, lembro. Mas adivinho que um dia a poeira deixará de esconder os vestígios porque os vestígios deixarão de existir. Hoje, amanhã. E um dia talvez toda a memória se apague e o presente seja então apenas o presente. E o Homem se transforme em outra coisa qualquer, mais feliz na sua ignorância.

Um jardim sem metafísica

Morreu uma abelha no meu jardim. A abelha morreu e logo um conjunto de pequenos insectos veio retirar do seu cadáver tudo que ainda se podia aproveitar. Agora, resta no meu jardim uma carcaça da abelha que foi, e uma infinidade de outros seres que se afadigam neste ressuscitar primaveril.

sábado, março 20, 2004

Caminhos (2)



"A família estava toda sentada no solo, cada qual com o seu prato na mão. Ouviram as crianças lá fora, raspando o fundo da panela com os paus, as colheres e pedacinhos de metal enferrujado. A panela tornava-se invisível, oculta por uma muralha viva de crianças. Não falavam, não discutiam nem brigavam, mas todas elas eram movidas por uma ferocidade muda. A mãe virou as costas, para não ver a cena."




Fotos de Dorothea Lange
Texto de John Steinbeck - "As Vinhas da Ira"

Eram seis da tarde, algures em lado nenhum.

- Apetecia-me estar morto.
- E então porquê, meu amigo?
- Sei lá, palavras…palavras.
- Fala então por falar, é isso?
- Falo…sim, falo…e ouço.
- Olhe que isso não é razão para morrer.
- Não, não é. Talvez não seja. Talvez falar seja apenas falar e ouvir seja apenas ouvir.
Talvez tudo seja fingimento…talvez esqueça, talvez me lembre.
- Já a memória é conhecida por matar muita gente.
- Lembrar…gestos e palavras.
- Então esqueça, homem. Esqueça.
- Não posso. Morreria então, morreríamos todos.
- E que mais quer o senhor?
- Uma eternidade qualquer.
- Esqueça homem, faça o que lhe digo: esqueça. A eternidade é coisa que só interessa a quem caminha as áleas da morte. O presente é tudo o que temos.
- Nada, portanto?
- Sim, nada. Já é ter muito, então não acha?
- É capaz de ter razão.

Caminhos

Gerês, Bouça da Mó, 23 de Julho de 1945
Vai daqui a Roma sem parar… - garantiu-me o guarda-florestal, a mostrar-me pela serra fora o piso aliciante da geira romana.
- Vai.. Vai… - respondi-lhe eu, a tirar da esperança universal de que todos os caminhos vão dar a Roma uma filosofia sem complicações.
O rio Homem (que assombroso nome para um rio!), em baixo, passava no seu calvário de carne e osso; do lado de lá, a Serra Amarela erguia-se abrupta; com as suas casarotas enigmáticas no alto; sobre a minha cabeça, hirto, pendia o pico do Cabril; de maneira que nenhuma metafísica era possível ali.
- E que tal esta solidão? – quis saber eu.
- Triste… - respondeu o eco de um queixume. – Sempre aqui neste ermo…
«Vai daqui a Roma sem parar», pus-me a reflectir outra vez. E percebi então, de repente, a sedução mágica dos caminhos e o desespero amargo das sentinelas.
Miguel torga

quinta-feira, março 18, 2004

A pontuar em breve

Todos os dias vivo e vivo e é isto tudo que tenho ou então não talvez existam outras coisas e talvez viva outra vida e talvez esqueça quando penso me estar a lembrar a memória é também assim um artefacto incompreensível primeiro reconstruído depois necessariamente vestígio diferente do que foi ou terá sido ou nunca foi ou existe ainda algures em outra dimensão inexistente como se isto de fazer sentido fosse uma qualquer obrigação do pensamento como se comunicar fosse apenas dizer algo que os outros entendam talvez não entendam nunca ou entendam sempre ou outra coisa qualquer intermédia palavras também são isto distracção dos sentidos matraquear calmante em dia de trabalho e agora é noite e estou aqui estar aqui é só estar aqui ou é outra coisa qualquer isso não interessa agora não interessa a ninguém não interessa nunca talvez não sei não quero saber escrevo são palavras apenas palavras não julguem ser sentimentos não são podem ser meus alheios talvez afinal sejam pensamentos ou são apenas palavras ou não são nada podem ler tentar compreender se isso vos interessa podem ignorar sabiamente ou esquecer ou relembrar ou nada lembro-me agora que esqueci a palavra nada e complico ou outra coisa qualquer talvez sono cansaço ou este existir sempre comigo que por vezes me enlouquece simplesmente assim tudo junto sem pontuação alguma

terça-feira, março 16, 2004

Esta hora pequena...

Esta hora pequena em que vos escrevo, roubando tempo ao outro tempo-urgente em que trabalho. Esta hora suave, em que o calor lá de fora surge aqui onde estou transfigurado num calor suave que embala o que escrevo, o que penso. Esta hora pequena em que vos escrevo, feita das múltiplas horas em que penso, sinto, arremeto contra os esquecimentos do passado e construo mil e um futuros divergentes. Esta hora pequena em que vos escrevo, em que vos comunico que amo, que sinto, que vivo cada segundo só porque sim, sem outros motivos para além desse. Esta hora pequena em que vos escrevo, e em vos peço que vivam, assim, ou de outra forma, que vivam cada segundo dessas horas pequenas em que vivemos. Esta hora pequena em que vos escrevo, irmã gémea dessa outra hora pequena em que me lêem.

Esta luz

Uma luz brilhante que invade tudo, e nos invade também. O corpo que relutantemente adere a estes dias de sol, ao renovar primaveril que se respira. Devagar, lentamente, um outro tempo começa. E num todo nos embrenhamos nesses odores, nessas cores, nesse sentir-diferente conhecido desde sempre. E há algo de preguiça neste deambular pelas ruas, devagar, suavemente, esperando um-milagre-qualquer. Queria ter esta tarde para estar contigo, junto a ti, imóvel, respirando. Não tenho esta tarde mas terei outras. Existas tu e exista eu. Juntos. Vivendo.

...

No es que muera de amor, muero de ti.
Muero de ti, amor, de amor de ti,
de urgencia mía de mi piel de ti,
de mi alma de ti y de mi boca
y del insoportable que yo soy sin ti.

Muero de ti y de mí, muero de ambos,
de nosotros, de ese,
desgarrado, partido,
me muero, te muero, lo morimos.

Morimos en mi cuarto en que estoy solo,
en mi cama en que faltas,
en la calle donde mi brazo va vacío,
en el cine y los parques, los tranvías,
los lugares donde mi hombro acostumbra tu cabeza
y mi mano tu mano
y todo yo te sé como yo mismo.

Morimos en el sitio que le he prestado al aire
para que estés fuera de mí,
y en el lugar en que el aire se acaba
cuando te echo mi piel encima
y nos conocemos en nosotros, separados del mundo,
dichosa, penetrada, y cierto, interminable.

Morimos, lo sabemos, lo ignoran, nos morimos
entre los dos, ahora, separados,
del uno al otro, diariamente,
cayéndonos en múltiples estatuas,
en gestos que no vemos,
en nuestras manos que nos necesitan.

Nos morimos, amor, muero en tu vientre
que no muerdo ni beso,
en tus muslos dulcísimos y vivos,
en tu carne sin fin, muero de máscaras,
de triángulos obscuros e incesantes.
Muero de mi cuerpo y de tu cuerpo,
de nuestra muerte, amor, muero, morimos.
En el pozo de amor a todas horas,
inconsolable, a gritos,
dentro de mí, quiero decir, te llamo,
te llaman los que nacen, los que vienen
de atrás, de ti, los que a ti llegan.
Nos morimos, amor, y nada hacemos
sino morirnos más, hora tras hora,
y escribirnos y hablarnos y morirnos.
Jaime Sabines

segunda-feira, março 15, 2004

Estas ruas

Estas mesmas ruas em que caminho e das quais me despeço, e onde amanha irei caminhar de novo e me despedir outra vez. Estas ruas que conheço e me habituei a percorrer de olhos bem abertos, focando cada pormenor, cada pequena alteração. Estas ruas de pedras antigas, de ruídos antigos, de comércio anacrónico. Estas ruas de tascas de onde em dias quentes como este sai um cheiro enjoativo de vinhos e fritos, estes sons que através janelas abertas das casas invadem a rua, comunicando pelo ar as notícias de Portugal e do mundo. Estas ruas que conheço e desconheço e das quais me despeço. Numa despedida que, no fundo, existe desde sempre e que se renova a cada dia. E nestes dias assim, em que sou invadido pelo sol, e todos os projectos parecem realizáveis, caminho por estas ruas como se elas fossem do passado, e todos os ecos que me chegam são a repetição de ecos do passado, das tardes sonolentas naquela casa, e, apesar de tanta gente ter desaparecido, estas ruas em que caminho são essas outras ruas em que fui criança. E este eu que aqui caminha é um outro eu que já partiu, para sempre.

Sábado

10.30 da manhã, ainda meio ensonado, fumo um cigarro e olho pela janela o movimento do teu bairro. Outro lugar, penso primeiro, mas depois reconheço cada linha do seu traçado, numa memória antiga de existência desconhecida, até hoje, quando estou aqui, só, olhando pela janela, reconhecendo, fumando, esperando por ti e sentindo o teu mundo. Apenas me interrompo para me perguntar: de que distâncias somos feitos nós dois? Mas não me respondo. Deixo-me estar, vivendo cada segundo deste momento-eternidade.

Ode à Alegria

Só amamamos
aquilo que amamos em vão.

Tenta outra sonda de rádio
quando dez tiverem falhado,
toma duzentos coelhos
quando cem tiverem morrido:
só isso é ciência.

Perguntas o segredo.
Tem um só nome:
de novo.

No fim
um cão traz nas mandíbulas
a sua imagem na água,
pessoas fixam a lua nova,
amo-te.

Como cariátides
os nossos braços erguidos
sustentam o peso de granito do mundo

e derrotados
venceremos sempre.

Amor
Dois mil cigarros.
E uma centena de milhas
de parede a parede.
Uma eternidade e meia de vigílias
mais brancas que a neve.

Toneladas de palavras
velhas como pegadas
de um ornitorrinco na areia.

Uma centena de livros que ficaram por escrever.
Uma centena de pirâmides que ficaram por construir.

Lixo.
Pó.

Amargo
como o princípio do mundo.

Acredita em mim quando digo
que foi belo.
Miroslav Holub

(Trad.: Jorge Sousa Braga)

Para uma amiga (2)

Depois de um silêncio demasiado longo, escrevo:
Apetece-me dizer: Não vás. Mas digo apenas: Segue o teu destino.

Esta Hora

Nesta hora, em que começa a escurecer e o comboio inicia o seu movimento, relembro o teu sorriso e choro, relembro os teus gestos e choro, a tua voz e choro também. A felicidade foi e será outros momentos que não este, em que começa a escurecer e o comboio inicia o seu movimento.

quarta-feira, março 10, 2004

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“O comandante olhou para Fermina Daza e viu nas suas pestanas os primeiros pingos de um orvalho de Inverno. Depois olhou para Florentino Ariza, o seu domínio invencível, o seu amor impávido, e ficou assustado pela suspeita tardia de que é a vida, mais do que a morte, que não tem limites.
- E até quando pensa o senhor que podemos continuar neste ir e vir dum caralho? – perguntou-lhe.
Florentino Ariza tinha a resposta preparada há cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com todas as suas noites.
- Toda a vida - disse.”
G. G. Marquez – “O amor nos tempos de cólera”

sábado, março 06, 2004

Fragmentos de intimidade (2)

(Uma espécie de silêncio, marcado pela tua presença-ausência. Falamos, em silêncio, escrevemos. Estás aqui. Eu estou aí. Estamos. Nós.
Falas-me de amor e eu fico embaraçado.)
- Ouvi agora o teu riso – Escreves.
- Ris-te? – Perguntas numa dúvida que não é bem uma dúvida.
- Ri. – Respondo.

(Por vezes nem acredito em tudo isto. Não acredito que existas. Que me ames. Que tu sejas assim como és. Mas o que consigo dizer é:)
- Estou muito feliz.
E tu perguntas:
- És muito querido, sabias?

- Tens-me dito...mas tenho dificuldade em acreditar. – (Digo eu, que ainda duvido que possa haver alguém como tu. E, para acreditar peço:)
- Tens que dizer mais vezes.
E tu repetes:
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido

(E eu deixo-me ficar a ver as palavras a formarem-se no ecrã. E sinto apenas que te quero, perto de mim. Quero estar junto a ti. Saudades do teu corpo. E brinco, para dizer qualquer coisa, para não ficar calado. Para não enlouquecer por causa da distância.)
- Está bem...tem calma...já acredito
E tu repetes:
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido
- És muito querido

(Numa interminável série de palavras-sentimentos.)
- Está bem, acredito.
- Mesmo?
- Acredito em ti, só porque tu és tu.
(E confesso-me:)
- Tu facilitas o eu ser assim, liberto, eu, mesmo eu
Tu também és assim querida
Afectuosa
Gosto da forma de te entregares aos projectos e às pessoas
És bonita por isso.
E também porque és bonita, sem isso
És bonita, sei lá
Bonita sempre.
(Tudo palavras aquém do que tu és. Aquém da tua beleza.)

(E entro no campo das intimidades breves, dos teus gestos, dos teus hábitos, de todos os pormenores que amo em ti.
E brincamos com palavras, sobre os teus gestos, os teus monólogos…. E os meus absurdos.
Cada um de nós vive o outro, em memória.)

(E depois, umas palavras que encontras levam-me a transpor tudo aquilo que sinto:)
- Estou sem palavras,
ou com palavras,
com palavras grandes,
só palavras grandes,
enormes,
conjugadas contigo,
por ti,
em ti.
AMOR
AMIZADE
VIDA...VIVER
FELICIDADE
Até tenho medo de estas palavras serem eu contigo. Serem nós. Em palavras.
É tão bom dizer-te tudo que quero dizer… o que sinto...o que sou
É tão bom poder ser eu...e viver...feliz porque tu estás aí
EXISTES
Me ouves.
Falas
Os teus pensamentos que eu penso… e penso….e penso, porque são teus, e eu gosto de viver neles, com eles.
Os teus sentimentos, que são teus, meus, nossos.
E os teus medos que partilho…de fora…entrando…procurando entrar…sentir como tu.
Sem esforço
Só sentindo
A ti

Apetece-me beijar-te
- Também a mim. – Respondes num murmúrio.
- Segurar-te.
Abraçar-te
Sentir o teu corpo.
- Deu-me uma vontade... um Desejo de estar contigo... – Diz-me a tua voz murmurada, outra vez.
- Se fecho os olhos...olho para ti
Vejo-te também a olhar para mim.
E, qualquer coisa como a PAZ, me invade
É tão bom estar contigo, partilhar contigo
Ser contigo
Ser, até, por ti

(E reentro na memória sensitiva:)
- Os teus braços
A tua pele
O teu calor
- Vem – Pedes.
- Vou.
Vou...até ao teu sorriso,
ao teu movimento,
ao teu cheiro,
ao sabor do teu corpo,
aos beijos,
ao sentir o teu corpo junto ao meu.
Vivendo como se tudo fosse apenas o teu corpo
Beijar-te com calma…. e com a fúria de querer muito, muito, muito.
Beijar as tuas costas, rodar o teu corpo e olhar o teu rosto (os teus olhos outra vez – a forma como me olhas), e rever os leves movimentos do teu corpo me fazem não conseguir resistir a beijar-te de novo, a querer beijar-te com urgência, querer trincar-te, segurar-te, e de novo beijar-te, e amar-te.
- Quero-te. – Escreves.
(E eu fico mudo de memória-desejo-futuro.)

Fragmentos de intimidade (1)

O lugar-nunca é uma utopia.
Agora.

Neste presente em que te sinto,
em que te sentir me faz fluir livremente
e em que toda a dúvida deixou de fazer sentido.

Pressinto o teu corpo presente, e envolvo-o com os meus braços,
estreito-te contra mim
e sinto-me.

Todo eu sou sentir.
Abandono todos os (im)possíveis raciocínios
e entrego-me ao prazer de estar contigo.

Há um qualquer lugar-perfeição nisto de estarmos juntos e nos amarmos.
Há um qualquer fogo, antigo, remoto, nesta harmonia.
Contigo, descobri que a felicidade é algo possível.
E que um amor basta para nos fazer perdurar na memória sensitiva do mundo.

Eternamente.

Descobri o sempre. Contigo.

quinta-feira, março 04, 2004

Momentos

Durante a tua suave e breve ausência, deixo-me ficar aqui sentado. Escrevo. Repetindo esse ritual de inúmeras épocas e inúmeras pessoas. E ocorre-me, como antes ocorreu a outros, este sentimento de que nada fica. Ou fica? Do que nestas palavras é sentimento, tudo vai comigo, vá onde for, tudo levo, carregando comigo, sem peso, levemente. Do que nestas palavras é vazio, tudo é largado em qualquer lado, sem sentido, como que perdido, imensurável apenas porque é nada.
Sinto, agora, uma breve desilusão que é cansaço apenas. Penso em dormir. Mas peço-me que escreva. Sinto esta necessidade de lutar contra aquilo que a vida tem de mais quotidiano, mais vulgar, mais absurdo, mais não-vida….

Escrevo. Repito palavras apenas pelo gosto de existir uma cadência qualquer neste sentir. Em haver uma força, bruta, desconhecida, neste processo de comunicar por sinais reconhecíveis pelo outro. Gosto. Mas perco-me em pensamentos sobre o processo de escrever e esqueço o haver palavras que têm de ser ditas, sentidos-construídos que têm que ser transmitidos a alguém. Esqueço-me. E, talvez, parte do prazer advenha desse esquecimento. Desse sossegar nas palavras, no seu intimo, escondido, despindo-me também. Sei lá. Escrevo. Sem firmeza, numa suave volúpia. Descubro que há algo de sensual nesta minha relação com as palavras. Este esquecimento do sentido, do querer dizer, também é um reflexo desse prazer. Esta vontade de estar assim entre as palavras, palavras sem destino, estas palavras-minhas-palavras-nenhumas que escrevo assim, porque espero.

Saber que todas estas palavras, todos estes gestos, todo este eu que sou, serão menos que grãos de poeira na memória dessa coisa dura chamada história não consegue, hoje, encandear este prazer. E se eu sou vão, que seja. Nem tem muito sentido pensar-me mais do que isso. Quero apenas que uma sombra do nosso amor perdure, etérea, na alma perdida deste lugar.

Mas agora que chegas, só penso em viver a tua suave e breve presença.

quarta-feira, março 03, 2004

Futuro

Uma palavra. Primeiro, uma palavra. Seguida de outra palavra. Há sempre outra palavra, seguidamente. Calado. Aposto neste silêncio. E digo. Construo. Artefactos. Pensativo, insisto em classificar este olhar. Um olhar interior que me julga. Eu a mim. Descubro-me, transitoriamente. Agora, neste momento, em que estou só, embora te sinta por perto, colada em mim, mas em que estou virado para dentro, obsessivo. Parado. Perscruto. Quem sou? Diz-me tu. Quem sou? Em que acredito? Eu sei. Sei as respostas a estas perguntas e a outras. Não espero que me digas, mas que me compreendas. E compreendes. Talvez sempre, talvez por vezes, a maioria, certamente. Mas tremo. Não metafisicamente, tremo fisicamente. Já não há espaço para emoções-metáfora. Tu, ainda que breve aparição, estás no centro da construção deste episódico mundo que quero criar. Transitório. Julgo que eterno também. Talvez transitório-eterno. Este mundo. Em que eu sou eu, sou em ti, e sou nós. Temos que nos habituar ao ritmo novo desta plêiade de seres que somos, agora. Multiplicamo-nos, e persiste em nós o medo de nos diminuirmos. Agora compreendo o quanto todos os momentos são breves. Porque agora, longe, tento afagar os teus cabelos, ressuscitar os teus beijos e não consigo. Consigo e não consigo, não sei. Estas palavras são apenas para me refrear a vontade de te ligar, e ouvir a tua voz, S-E-N-T-I-R--T-E. No fundo quero abrir espaço para toda a coragem. Quero criar todo o futuro possível-impossível-real. O nosso amanhã. Dos dois. Meu. Teu. Sei lá. Esqueço. Quero presentear-me de presente. Contigo. O presente-sempre. Eternamente.

segunda-feira, março 01, 2004

Para uma amiga

Um indefinido conselho
Hoje…hoje é também qualquer outro dia. Tenta parar, reduzir os pensamentos a instantes, acalmar, aclarar, sorrir. Tenta sobretudo que nada te pareça difícil, nada é difícil, apenas tudo é difícil. Para, escuta, ouve, sente, e liberta-te do tudo. Sente-te a ti própria, deixa-te ir, devagar, a tua vida conquistada passo a passo pela tua força, será, tenho a certeza, um quase-tudo aquilo que sempre sonhaste. Acredita em ti e acredita, mais, nos outros. E verás que serás feliz como mereces.

Estas palavras....todas.

Paro...pensativo, ausente do lugar aqui. Mergulhado no sonho-realidade de existires. Este silêncio, distância das palavras breves e exactas, é para mim como que um refúgio do sentir assim, a todas as horas, a todos os minutos, a todos os segundos, sempre, constantemente. Mas talvez as palavras me fujam...sei que calo, excessivamente, o que sinto (ia escrever o que sou, seria mais exacto assim). Espero que compreendas esse silêncio, tal como espero que não o perdoes nunca. Faz-me falar, porque sabes que nunca direi o que não sinto, e se abrir a boca será para te dizer: Amo-te. Amo-te aqui, agora, no próximo breve momento, aí, contigo, sozinho, concentrado e distraído, quando falo, esqueço, madrugo, acordo, durmo, sufoco, suporto, trabalho, espero, caminho, sou, desapareço, me calo, falo, sorrio, choro, tenho esperança, quase morro, ou corro, quando me perco e te encontro, quando sofro, quando te olho, quando o teu rosto é para mim todo o mundo possível. Amo-te sempre. Amo-te assim. E, tens razão, nunca mais calarei estas palavras...todas.

Vestígios da tua presença

Não é bem uma memória, é mais um arrepio de pele. Que é uma memória em forma táctil, corporal. Esse arrepio, que é um vestígio de ti na minha pele, traz consigo o cheiro do teu cheiro, o sentir do corpo do teu corpo... E desta forma uma parte (parte da parte, vestígio) do teu eu que é corpo se funde com uma parte (parte da parte, vestígio) do teu eu que é alma, e vivem em mim, na permanência desta ausência-presença. Que é a minha forma de te sentir, aqui, agora.

Não sei se é isto ou outra coisa…ou isto e tudo o mais. Não sei…sinto(-te)

O indizível, não exactamente o indizível. Apenas, o que podendo ser dito, escapa na sua matéria incorpórea ao domínio das palavras por dizer. Ou então, uma incapacidade minha (do momento? de sempre?) de traduzir, ou reduzir, a símbolos compreensíveis esta realidade momento-pleno, véspera de outros momentos, memória de outros, diferentes, iguais momentos. E não falo apenas de um momento, de um olhar, de um contacto, de um beijo…nem da união de tudo isso, nem da desunião de todos os pormenores. É que resta sempre algo, que se guarda na memória-do-corpo (esta memória que é toda a memória, a memória plena). E no silêncio, de agora, esta sensação profunda de paz, que não é deste momento, mas que ecoa, ainda, apenas porque tu existes em mim.