sublinhar

sexta-feira, abril 30, 2004

Apesar da chuva.

Afinal lá me consegui obrigar a trabalhar, e o texto longo queda-se por umas tristes três linhas. Agora vou de fim-de-semana e o que ia dizer vai ter que esperar. Bom fim-de-semana para todos.

Quotidiano [uma mão cheia de nada]

Fui almoçar, regressei, pelo caminho apanhei alguma chuva. Nem a boa refeição espantou a minha indolência de hoje. Estou tão calmo que me parece que andei a tomar anti-depressivos em doses exageradas. Mas não, nem um. Sinto algo que se assemelha a felicidade. Talvez porque gosto de estar a esta hora aqui no escritório, não está cá mais ninguém, a porta está fechada porque ainda não é hora de abrir, e esta calma inunda tudo. Não falta até o rádio dos funcionários do andar de baixo, que a esta hora ouço perfeitamente, e que fica durante toda a hora de almoço, incansável, a debitar música pimba de uma qualquer rádio local. Isto não é o que eu sempre sonhei, não faz mal porque a realidade sempre me agradou mais do que o sonho. Devem estar a pensar o que vos interessa estas coisas, isso não sei responder, apetece-me escrever assim, e cá está.
Tive que me interromper outra vez porque um cliente telefonou para a empresa lá de baixo, que só abre às duas, lá fui eu atender o telefone, nada de mais, só uma encomenda.

Estava a tentar lembrar-me o que ia escrever hoje de manhã, sei que era algo deste género, por isso calculo que não faça diferença escrever ou não. Agora vou sair, volto já.

Momento

Comprei agora o Independente e o livro que o acompanha hoje, na contracapa encontrei esta frase:
"A arte é desregra permanente. Uma fórmula na mão só nos garante que seremos capazes de nos repetir ad infinitum para os basbaques, a começar pelo basbaque que há em nós. Uma fórmula não abre caminhos; fecha caminhos. Deixem que cada um dos vossos momentos felizes não se repita nunca mais."
Alexandre O'Neill

Um texto longo, sem razão, sem pausas, apenas porque chove lá fora e não me apetece trabalhar.

Muitas das coisas que escrevo ficam a pairar num limbo de múltiplos sentidos. Não que eu pretenda que isso aconteça, não tenho por hábito ser propositadamente...[chegou a minha boleia, vou almoçar... logo à tarde continua se a disposição for a mesma]

A linha contínua

Hoje perdem-se no vazio as palavras e eu, vítima de um paradoxo, encontro-me nas múltiplas memórias de partilha infinita. Agente, apenas isso, do pulsar antiquíssimo do desejo. Não foi só quando encontramos a inteligência que nos descobrimos. Somos antes e depois das palavras, somos muito para além delas.

quinta-feira, abril 29, 2004

Sem rede, sempre sem rede. Prefiro morrer na queda...

Hoje, é o dia em que te quero dizer: Agora! Porque mais tarde podemos estar mortos, ou simplesmente estar sem tempo. Hoje é esse dia em que armado em inocente te digo: Está nas tuas mãos quebrar as frágeis barreiras de vidro que ainda nos separam. Nem amanhã nem depois, hoje. Este é o dia em que decido que tenho que percorrer o fio de arame (a vida) sem nenhuma rede que me proteja da queda. Sem rede, sempre sem rede. Prefiro morrer na queda a ter uma segurança falsa qualquer.

terça-feira, abril 27, 2004

P-a-s-s-o-a-p-a-s-s-o

I-n-v-e-n-t-o-l-e-t-r-a-a-l-e-t-r-a-t-o-d-o-u-m-c-a-m-i-n-n-h-o-d-e-r-e-g-r-e-s-s-o-à-v-i-d-a.

É urgente falar.

Porque as palavras não são apenas palavras mas também fragmentos de nós. Porque a voz precisa de fugir do deserto e conhecer-se ouvida, precisa receber a sabedoria do reflexo. Porque aquilo de nós que são os outros pode bem ser o pedaço mais manifestamente inocente do que possuímos. Porque ouvir, ler, admitir a partilha das palavras, dos sentimentos, dos fluídos, é talvez a única experiência verdadeiramente humana que conhecemos. Porque sozinhos somos apenas outra coisa, demasiado vaga, demasiado estéril. Porque todas as lágrimas e todos os risos verdadeiros são tudo que podemos procurar. Porque conheci a inflexão da tua voz e te vou amar naqueles momentos para sempre. Porque quero estar vivo e não apenas ser sombra de sonhos impossíveis. Porque hoje será sempre hoje, ou outro dia, e eu quererei sempre isto ou outra coisa. Porque não possuo o dom das certezas, nem quero. Porque me fascina a inteligência e as palavras ouvidas por aí. Porque gosto de gostar, e luto diariamente contra a morte, contra qualquer morte, e toda a espécie de esquecimento. É urgente falar, ouvir, comunicar.

Hoje, este dia.

Neste momento, paro para fumar um cigarro e esqueço. Um outro momento se segue e relembro. Hoje, apenas um dia. Como se uma luz brilhasse e isso fosse apenas isso, ou tudo. Como se um momento redimisse todas as lágrimas, ou a recordação do teu sorriso representasse toda a salvação. Nada representa nada, são tudo palavras e metáforas. A vida, essa outra coisa que não alcanço, deve ser feita de outra subtil matéria que não as palavras e os significados. Talvez o instinto seja tudo ou apenas uma maneira de morrer mais depressa. Hoje, este dia. Houve sol, ainda há calor. Sinto-me bem. Mas existe este reflexo para procurar uma coisa qualquer, para acreditar que existe alguma coisa mais do que isto, simplesmente. Hoje, este dia. Apetece-me ser assim apenas. Sem muito sentido ser assim apenas. Desfiar palavras que me surgem, quase sem pensar, ou pensando demasiado. Hoje, este dia. Este pensamento reflexo de outra coisa. Este conjunto de palavras reflexo de outras palavras. Tudo são palavras, nada são palavras, e a vida?

segunda-feira, abril 26, 2004

Estas palavras, não outras.

Talvez estas sejam palavras invulgares. Peço-te: Lê para além da sua superfície.
Porque o trilho não está marcado pela ausência de passos, mas por muitos passos, de cá para lá, muitos e contraditórios passos. Talvez seja isso que digo, hoje, quando olho a passagem. O que digo é que o medo é outra coisa a que chamamos, ou chamo eu, medo, apenas porque é mais fácil. Porque a alegria, o tudo, é a antítese do medo. Assim se grava para sempre a palavra todas as palavras: Vida. Hoje, estou aqui, mas o trilho, ou essa outra coisa chamada destino (para nós oceano) ainda me parece demasiado pisado de emoções outras. Que não sinto agora? Ou que sinto agora, benevolamente diferentes. Porque o passado, não passou nem passa nunca, ainda te amo (outra). Mas isso é apenas querer saber como flutuam os teus dias, que ideias de tudo, ou nada, te afligem ou te alegram. Isso é o caminho agora, que passos posso dar (e quando?) se essas novas pegadas vão apagar (para sempre), as que existem agora. Este é, admito, o motivo não-motivo mais cruel que poderia arranjar. Se não fosse este seria outro. Porque eu sou apenas este que sou, agora. Amanhã, a luz do sol incidirá sobre o meu corpo, e tudo será diferente. Levantarei o pó da estrada, apagarei tudo que desejar o esquecimento e serei outra vez eu. Um solitário a caminho do tudo. Por agora é muito tarde ou muito cedo. Hoje é apenas hoje. Até amanhã.

domingo, abril 25, 2004

Agora não, por favor esperem mais um pouco

Porque hoje tudo que tenho para dizer são palavras impossíveis.

sábado, abril 24, 2004

Don't Know Why

I waited 'til I saw the sun
I don't know why I didn't come
I left you by the house of fun
I don't know why I didn't come
I don't know why I didn't come

When I saw the break of day
I wished that I could fly away
Instead of kneeling in the sand
Catching teardrops in my hand

My heart is drenched in wine
You'll be on my mind
Forever

Out across the endless sea
I would die in ecstasy
But I'll be a bag of bones
Driving down the road alone

My heart is drenched in wine
You'll be on my mind
Forever

Something has to make you run
I don't know why I didn't come
I feel as empty as a drum
I don't know why I didn't come
I don't know why I didn't come
I don't know why I didn't come
Norah Jones

sexta-feira, abril 23, 2004

O primeiro passo – Poesia

Este é ainda indefinido,
parte, mas para onde?
O que procura?

É ânsia de movimento
e de encontro,
mas existe criança e
demora a compor-se

Quando crescer, tornar-se-á outro
por agora é apenas
desejo.

Inicia o delírio da vida
mas não se conhece,
nem se pensa,
apenas existe.

Belo ainda,
incorrupto,
o primeiro passo e depois
tudo.

quinta-feira, abril 22, 2004

A impossibilidade de caminhar

Talvez as palavras sejam apenas uma fuga ao movimento. Como se um homem parado numa rua secundária a meio da noite tomasse a indecisa decisão de ficar parado a pensar em vez de ir. Porque o seu destino seria sempre algo de concreto, ainda que desconhecido. Só a sua indecisão se assemelha a um vazio. Mas, talvez, seja apenas isso que ele pode fazer agora. Estar parado. Imaginem-no sob a luz de um candeeiro, podem até imaginar uma chuva fina, e um homem, de gabardina preta, que pensa. Confesso que conheço os seus pensamentos, digo: os meus, e que vos posso confessar que ele não decide. Apenas pensa para que o tempo passe e tudo de alguma forma se torne inevitável. Esse tudo será, todavia, o nada. E ele, assim parado, apenas confere à morte o direito de o levar. Porque imaginemos uma vida, numa imagem: uma cama, um homem e uma mulher, nenhuma palavra atravessando a calma da tarde, apenas um silêncio, uma partilha para lá de todo o entendimento. É a ideia do definitivo contrário disso que ele não suporta. O que ele pensa agora, e talvez chore, é que se continuar parado a vida seguirá o seu curso e o tempo não estacionará à sua espera. Mas se está parado, fugindo, ou fingindo fugir da vida, é porque algo nele o impede de desencadear o próximo passo. Porque, digo isto apenas em teoria, se o próximo passo for por qualquer cósmico motivo o passo errado, o fim será o fim também, mas o sofrimento maior. Porque este pensamento é sombra de outro pensamento qualquer, e esta lágrima, confesso que ele está mesmo a chorar, é também a sombra de outras lágrimas. Ele espera na esperança de não se anular em algo maior, e, fundamentalmente, incompreensível. Como se o erro não fosse acreditar que alguma coisa pode ser intensamente maior e incompreensível do que a própria vida. Parado, metaforizado na antítese da decisão, ele escapa à vida, ou seja: morre.

Yes, the river knows

Please believe me
The river told me
Very softly
Want you to hold me, ooo

Free fall flow, river flow
On and on it goes
Breath under water 'till the end
Free fall flow, river flow
On and on it goes
Breath under water 'till the end
Yes, the river knows

Please believe me
If you don't need me
I'm going, but I need a little time
I promised I would drown myself in mysticated wine

Please believe me
The river told me
Very softly
Want you to hold me, ooo

I'm going, but I need a little time
I promised I would drown myself in mysticated wine

Free fall flow, river flow
On and on it goes
Breath under water 'till the end
Free fall flow, river flow
On and on it goes
Breath under water 'till the end
The Doors

quarta-feira, abril 21, 2004

E.

São uma e vinte e quatro da manhã. Ainda escrevo para tentar expulsar o que sinto. Hoje vi um grande amigo que não via há muitos anos. Sabia que ele passou esses anos em permanentes tratamentos psiquiátricos que o levaram, aliás, a vários períodos de internamento. Hoje, vi-o na rua, chamei-o, falei com ele. Estive toda a noite a pensar nisso, parte da noite a escrever sobre isso. Mas não há pensamentos ou palavras. Não há justificações nem culpas. Um sorriso, um jovem cheio de esperança, transformou-se em dez anos num mundo aparte, rodeado do mais obscuro silêncio, totalmente impenetrável. Hoje fiz-lhe uma pergunta banal e respondeu-me com frases sem sentido, mas muitas frases, como se tacteasse à procura de uma correcta para aquela pergunta. Como se houvesse vontade de falar mas já não os meios para o fazer. Sei tudo o que desencadeou este processo, e nem por isso o compreendo melhor, nem por isso o consigo definir, nem por isso perco a raiva indefinida que sinto.

segunda-feira, abril 19, 2004

Comunicar

Há dias em que o medo nos prende os sons na garganta, e que escrever é um contínuo jogo contra as letras que desistem de aparecer nas palavras. O ecrã enche-se de linhas vermelhas, de erros que são também fracturas no comunicar. Ouço as palavras dentro de mim, até o apelo da metáfora, e escrevo: como se o ondular nocturno do mar tivesse deixado de produzir a sua música. Mas de algum modo, de algum modo sensível dentro de mim, desisto. Encontro as palavras erradas, apenas as palavras erradas. Que tudo que é estrangeiro de mim não me reconheça. Que profunda, esta sabedoria do alheamento. Como se tudo isto não fosse apenas um apelo para que ouçam os sons roucos, as impossíveis palavras mutiladas, reflexos do que penso. E esta desordem, esta afloração incansável de uma doença incurável chamada silêncio. Que palavras são estas, e de quê? Que existência, e que outras existências, e porquê? Seria angústia, se não sentisse a calma refulgente de não ter que dizer nada de especialmente significativo a ninguém. Imagino o poeta na sua mansarda impossível e detenho-me apenas na ideia que de todos os inventos que o século passado nos trouxe, é a possibilidade da vossa companhia na distância aquele que mais prezo.

Quase compreensão

(…) afastou-se compreendendo, como nunca antes tivera necessidade de compreender fora do estudo do drama clássico grego, a facilidade com que a vida pode ser uma coisa em vez de outra e em que medida um destino pode ser acidental…e como, por outro lado, um destino pode parecer acidental quando é impossível as coisas serem, jamais, diferentes do que são. Isto é, afastou-se sem compreender nada, sabendo que não podia compreender nada, mas com a ilusão de que poderia ter compreendido metafisicamente alguma coisa de enorme importância acerca da sua obstinada intenção de se tornar senhor de si mesmo se…se ao menos tais coisas fossem compreensíveis.
Philip Roth - "A Mancha Humana"

Frases "roubadas" [1]

(...)abomino de dia para dia a palavra - CERTEZA.

"Roubada" à mariajoão (Sopa de Letras)

Ai!! [a vida num país eléctrico]

Estava eu na secretaria de uma escola aqui da cidade, quando fui alertado pelo grito de uma funcionária que tinha acabado de apanhar um choque enquanto tentava abrir um armário de metal. Eu pergunto-me: aquilo é um indício das más condições de trabalho nas escolas deste país ou apenas uma inovadora medida anti-burocrática?

Até amanhã

Apetecia-me escrever mais, mas algumas dúvidas que surgem assim telefonicamente na noite fazem-me lembrar que algo em mim impede qualquer comunicação, qualquer compreensão. Que o defeito não pode ser dos outros, e assim, será meu, isso parece-me certo. E portanto, deixo-me adormecer, tento esquecer e deixo escrito: silêncio.

Amar

Amamos o que conhecemos ou o desconhecido?
Amamos apenas a descoberta e o seu prazer,
Ou podemos amar o quotidiano e o lazer,
E esquecer para sempre o perdido mito?

Recado

Há pessoas que preferem acreditar numa mentira apenas para consagrar um qualquer sofrimento auto-imposto. Eu nesses jogos recuso-me a entrar.

[E para que não restem dúvidas isto é que é escrito por mim e é para ti. – Talvez reconheças a diferença, ou talvez não. Se não a reconheces também não conheces nada de mim.]

domingo, abril 18, 2004

Particularidades

Imaginem que eu ia escrever um poema que começava assim: Porque a necessidade de falar se reverteu em fobia. Mas descobri que não era, nem podia ser, poeta e por isso o estendi e faço dele uma prosa. Porque em prosa, ainda que não saiba escrever, posso contar o que dizia o poema e, talvez, quem sabe, me faça entender. Porque como escrevi no poema, houve um tempo em que a necessidade de falar se reverteu em fobia. Também porque se dissipa o viver no quotidiano dos dias e esquecemos as memórias todas num pestanejar. Talvez possa concluir: talvez por isso, esta necessidade de amar.
Ou, já em prosa, esta necessidade de ser amado. Ou, de ser ouvido. Mas imaginem que esqueço essas variações. Escrevo apenas uma palavra: Gritar. Apenas por causa do apelo contrastante com o silêncio em meu redor, não silêncio mas um barulho infinito, potencialmente ensurdecedor, mas vazio. Se conhecem esse rugido de múltiplas vozes sem palavras percebem do que falo. Gritar porque ser ouvido implica falar mais alto, ou, apenas, porque existe uma raiva, uma dor, uma coisa qualquer algures, que me impele ao grito?
Mas imaginem que a compulsão para falar se reconverteu em silêncio, em palavras emudecidas, esquecidas na garganta. Imaginem que a leveza ficou esquecida, submersa num mar de medos também eles esquecidos. Talvez seja a comunicação impossível.
Reparem: isso é apenas uma parte. Porque existe o riso fácil, o humor em todos os momentos, o carinho, a vontade de conhecer.
Se tudo isto fosse contraditório, eu seria contraditório. E talvez tudo isto seja contraditório, e eu também o seja.
Que caminho interdito percorro neste post? E com que palavras percorro este destino?

Porque nem o que sou eu conheço totalmente

Porque nem o que sou eu conheço totalmente. Porque mesmo para mim existem dúvidas sobre os actos quotidianos que faço, sobre as profundezas, e a história, daquilo que sinto. Porque em certa medida somos também desconhecidos para nós próprios.
Eu sei, por experiência própria, que é possível encontrarmos respostas falsas às perguntas que fazemos sobre nós. Que é possível inventar um passado que “justifique” intimamente aquilo que fazemos. Não é desejável e acontece ou, pergunto-me, é inevitável que aconteça? Não sei, sinceramente não sei. Porque a verdade, sobre nós e sobre os outros, não é imutável.
E isto não é a justificação de mentira nenhuma que eu precise justificar. Não me lembro de qualquer mentira, nesse sentido vulgar, que tenha cometido e necessite de justificação. Há algo de mais intimo e diáfano na mentira de que falo.
Reparem: encontrem um medo, um qualquer medo que não uma fobia, pensem sobre ele. De onde vem? Que caminho percorreu em vós? Porquê esse e não outro? Agora recusem essa resposta que deram, a primeira resposta é só a resposta construída ao longo dos anos, faz também parte do processo de esquecimento. Agora pensem analiticamente e tentem encontrar outra resposta honesta. Esse é o primeiro passo para criar uma falsa história do que foi, do que nós fomos. A verdade é apenas uma provisória premissa que sustentamos porque nada mais no sustentará a nós se a esquecermos. Não podemos viver sem ela, mas não sabemos o que ela é exactamente.

Vestígios

Tudo que aprendemos dos outros são ténues vestígios. E de nós, apreendemos pouco mais do que esses fragmentos ambíguos de um ser. Um ser que nunca imaginamos, concretizamos, na sua plenitude. Até porque essa plenitude é mais intuitiva do que racional. Aquela lágrima que tem aquele motivo, é mais que uma lágrima de um só motivo. Aquele sorriso para mim, é mais do que um sorriso apenas e eu, nesse momento sou mais do que sou: sou eu e uma ideia tua de mim.
O que podemos então ter, querer, entender, dos outros? Nada? Que fácil não pretender a nada…fugir é apenas uma ideia íntima, cuja concretização se assemelha a suicídio que pretende a permanência.
Eu vejo, quero, tento entender. Devagar, sentindo, pensando, adivinhando em cada fragmento uma imagem do todo que a existir nunca poderei ver. Mas se olho para a parte de ti que a minha visão alcança e amo, e se olho para os mistérios identificados que aguardam na sombra, e também os amo, se te descobrir é uma aventura, se te entender me preenche hoje e para sempre. Então eu amo-te, a ti, ainda que não saiba nem possa saber nunca quem tu és.

sábado, abril 17, 2004

Poemas de amor

Leio e releio este, encontrado neste belíssimo livro:

Que amor sigo? Que busco? Que desejo?

Que amor sigo? Que busco? Que desejo?
Que enleio é este vão da fantasia?
Que tive? Que perdi? Quem me queria?
Quem me faz guerra, contra quem me pelejo?

Foi por encantamento o meu desejo,
E por sombra passou minha alegria,
Mostrou-me amor dormindo o que não via,
E eu ceguei do que vi, pois já não vejo.

Fez à sua medida o pensamento
Aquela estranha e nova formosura,
E aquele parecer quasi divino.

Ou imaginação, sombra ou figura,
É certo e verdadeiro meu tormento,
Eu morro do que vi, do que imagino.
Francisco Rodrigues Lobo

The Dancer Upstairs



Não conhecia este filme, apesar de ter sido rodado parcialmente em Portugal e da participação de actores portugueses. Vi por acaso, e gostei muito. O argumento é muito bom e conta com uma actuação excelente (como é habitual) de Javier Bardem.

A pergunta da semana

O que aconteceu ao sol agora que temos um fim-de-semana inteiro para o apreciar?

A VOZ:

Each place I go only the lonely go
Some little small caf‚
The songs I know only the lonely know
Each melody recalls a love that used to be
The dreams I dream only the lonely dream
Of lips as warm as May
That hopeless scheme only the lonely scheme
That soon somewhere you'll find the one that used to care
And you'll recall each fun time
Those picnics at the beach when love was new
It well could be the one time
A hopeless little dream like that comes true
If you find love hang on to each caress
And never let love go
For when it's gone you'll know the loneliness
The heartbreak only the lonely know
Only the Lonely-Jimmy Van Heusen/Sammy Cahn

Magnifico





[Ver cinema em Guimarães tem a desvantagem de esperar muito pelos filmes, mas em compensação podemos ver cinema com apenas quatro ou cinco pessoas na sala]

quinta-feira, abril 15, 2004

The day’s divinity

Shake dreams from your hair
My pretty child, my sweet one.
Choose the day and choose the sign of your day
The day’s divinity
First thing you see.

A vast radiant beach in a cool jeweled moon
Couples naked race down by it’s quiet side
And we laugh like soft, mad children
Smug in the wooly cotton brains of infancy
The music and voices are all around us.
Choose they croon the ancient ones
The time has come again
Choose now, they croon
Beneath the moon
Beside an ancient lake
Enter again the sweet forest
Enter the hot dream
Come with us
Everything is broken up and dances.

Awake

You can’t remember where it was
Had this dream stopped?

quarta-feira, abril 14, 2004

...




...
































O barco


Salvador Dali

A vaga ideia de um certeza

Tens razão, não vás mais longe na vontade de conhecer(-te). Espera, faz uma pausa, e procura uma estabilidade qualquer. Talvez seja isso. Relembro(-te) que apenas os olhos abertos permitem ver além do circunscrito mundo que somos. Mas digo(-te): esquece também isso que te lembro.
Por mim continuarei a caminhar, a tropeçar, a cair. O riso encontra-se algures nessa floresta de passos desencontrados, de sombras voláteis que ora surgem ora desaparecem. Não tenho caminho, não quero ter caminho, aliás essa floresta intrincada impede a construção de caminhos fiáveis Tudo se resume a uma ausência do medo. O medo é isto, ou outra coisa qualquer. Decide tu. Já nada disso me interessa.
Procuro o riso, ou uma futilidade qualquer, ou uma sensualidade impossível, ou uma luz, ou um espaço invisível de acalmia, ou, e porque não, o contrário de tudo isto. Eu que nem sei o que é tudo isto. E é tão bom não querer saber, não me interessar por saber. O desconhecimento, o conhecimento, ou dez palavras iguais ou diferentes dessas.
A vida, contra o não haver o que lembrar.

Apoteose do absurdo

A distância, enquanto distância física, não existe. O espaço, tal como o tempo, não existe. A sua percepção devora-nos ideias belas que chegamos a sonhar e, depois, a esquecer. E no regresso de distância nenhuma a nós próprios, somos outros. Querendo ou não somos ainda semelhantes a nós próprios. Apenas durante um tempo, por esquecimento do que somos, agimos ainda como o reflexo de outra coisa qualquer. Como se a viagem, que na realidade não existe nunca, tivesse apenas como fruto esta mudança improfícua de nós em outra coisa ao mesmo tempo próxima e distante. De distância nenhuma, física, apenas uma distância outra, psicológica. Chamo-lhe assim por simplificação do absurdo e para melhor incompreensão de quem lê. E se alguém quiser encontrar alguma coisa nesta quase-teoria sobre a distância eu posso resumir o que digo em duas ideias chave: A distância não existe; A distância existe.

terça-feira, abril 13, 2004

Terra

Há uma imagem que sempre me ocorre nos momentos em que a vida me parece uma coisa sem muito sentido: a imagem de uma mão pegando num pedaço de terra do solo.
Porque, na verdade, ou somos a mão que agarra a terra ou somos a terra que é agarrada, não há nada para além disso. E não há vida sem essa vontade de sentir a terra na nossa mão, sem vontade de nos envolvermos com ela, sem vontade de nos “sujarmos” enquanto esgravatamos os seus mistérios. Eu não conheço os segredos da vida, nem hoje nem nunca. Mas “sujo-me”, muito.

[Outra palavra é envolvo-me, mas assim perdia-se o húmus da ideia]

segunda-feira, abril 12, 2004

Instante

Um gesto seria:
Um braço estendido como quem acaricia a face do ser amado.

Seria portanto também um gesto-memória. Menos gesto do que palavras sobrepostas a uma vaga sensação de nulidade. Palavras esquecidas.

Uma palavra, hoje, seria:
Aqui.

Outro lugar, marcando outra distância.

A memória também seria a relva verde, ou não tão verde, talvez um pouco queimada pelo sol. A memória seria um conjunto de espaços esquecidos, e um conjunto de gestos ainda sentidos na pele. Como se a pele fosse o habitáculo sensível dessas outras horas.

A memória, em resumo, seria um momento de paz:
Um domingo qualquer, crianças suburbanas brincando na rua e um corpo estendido numa cama, tão longe de tudo como sempre esteve.

Pressinto que me acordarão sempre do sonho eternidade.

E se morrer fosse a resposta para tudo, o que seria a vida?

(Ou outra dúvida qualquer, porque os segredos escondem-se em silêncios partilhados a horas absurdas – ou então esta realidade carece de espaço físico em que existir – ou então o sol lá fora convoca-me a qualquer coisa outra que não o amor – ou talvez o amor – ou então aquela luz que passa diante de minha casa e se dirige para o infinito café (um qualquer café portanto) me pede que a acompanhe na procura da felicidade – como se pedir, querer, bastasse para ocultar o tempo todo, o esquecimento do que somos, ou a sua incompreensão – admito que escrevo tudo isto apenas com a intenção de não escrever tudo isto - ou então outra verdade qualquer – como se importasse o que digo no silêncio.)

Reflexos escondidos de outras palavras

Que desafio este em que as nossas vozes se cruzam e os nossos silêncios, reflexos escondidos de outras palavras, se estendem contraditórios através dos dias em que existimos. E na memória persiste enredada essa louca ambição de nos entendermos, como se o passado não fosse duas coisas diferentes, duas perspectivas contraditórias de um mesmo lugar. Porque por vezes penso que tu não existes tu, e tu, certamente, pensas também que eu não existo eu. Essas pessoas que construímos para nós… ou não construímos… e então somos. Eu sou, tu és. Como se estas fossem verdades indesmentíveis.
E a existência das palavras, o que quer isso dizer de nós? Nada? Tudo? Que profundos mistérios, podemos decifrar na curva das letras, no significado das palavras que eu e tu escrevemos? E se eu escrevo tantas vezes para ti, poderá um efeito cósmico provocar em ti o desejo concretizado de escrever para mim? São essas, e portanto estas, palavras uma sabedoria antiga da distância-amor-esquecimento-nada. Que partilha, e que mundo? Que futuro?

domingo, abril 11, 2004

Leituras (6)

"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."
Clarice Lispector

Leituras (5)

“E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo o meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, (…) erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, (…), as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundindo, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá o meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.”
Clarice Lispector – Perto do Coração Selvagem

sábado, abril 10, 2004

Leituras (4)

"Toda a vida me disseram:
Emília, tu não sabes nada.

Então não sei? Vocês é que me ignoravam. E isso dava-me coragem. Eu conhecia tudo de todos. Via a vossa vida inteira: corri por corredores e assomei às portas. Agora, estou aqui, sem saber para que lado me hei-de voltar. Qualquer um pode ser o de morrer."


"Emílida escreve: o papel de carta, de um verde granulado, enche-se de uma letra cuneiforme.

- não sei começar nem acabar uma carta. Escrevo entre duas fronteiras: o início que é um nome não pronunciado, e o fim que é a omissão de uma despedida. Só conheço a pobreza dos passos intermédios."
Rui Nunes - O grito

Tempo nenhum


Fotos: Revista Sin Límites

sexta-feira, abril 09, 2004

Todo o tempo

O tempo que passo procurando as palavras exactas do inexacto momento em que te ouvi pela primeira vez. O tempo, infinito tempo, em que te abracei. O tempo das memórias. O tempo da tua voz. O tempo, inacessível tempo, dos nossos beijos. Inatingível tempo do Nós. O tempo das memórias fingidamente esquecidas do futuro tempo sonhado. O tempo das lágrimas, queridas lágrimas. O tempo da incerteza. O tempo do carinho. O tempo do nada e da tristeza, na tua ausência. Este tempo em que te digo:
- Fala-me, não pares de falar. Ouvindo-te tenho a certeza de que sou real, e de que também tu és, fora de mim, real.*

*Frase retirada de “Lembranças” – Manuel António Pina

Primeiro Poema

"Sem horizonte ou lua, sem vento nem bandeira" - L. Von Maaske

A palavra, vida inteira, mata.
O seu silêncio não fala nem cala: ri.
Sem antes, sem depois, nem agora.
É o infalável que fala.
Não o ouças: ouve-o.
Oh, falar sem ouvir.
como ri o riso
pleno dos mortos,
os meus e os teus mortos
debaixo de nós.
Manuel António Pina

quarta-feira, abril 07, 2004

Cento e doze palavras

A
primeira
palavra
a
contar
do
fim
é:
“sempre”.
Pelo
meio
escrevo:
nunca; desejo; amor; interrogo; irremediável; demasiado.

As
frases
são
assim:
“uma irremediável dor que se sente, desencontrada, despojada, ilimitada”;
“haver alegria, que conheço, perdida no museu de fímbria cinzenta”.

Outra
duração:
“Criar espaços vazios, lugares utópicos, ilusões contraditórias, demasiado tempo desabitado procurando almas azuis no limite”;
“A imensidão da porta fechada, esperando que me convidem a entrar, subvertendo a ordem estabelecida das peças no tabuleiro-vida de xadrez.”


Durante
a
noite
eu
interrogo:
“que verdade inaceitável escondes do credo luminescente das flores?”.

E

um
silêncio
responde,
a tudo.

A verdade é que lentamente esqueço o significado da palavra.

Para sempre?

Colagem

Não quero que a minha sombra impeça o renascimento da flor. Porque até eu me posso esquecer de mim. Parado que penso. Parado que desisto. E caminho se caminho este percurso, subo estes degraus e esqueço-me de mim até despertar. Que memória é esta memória que recordo? Se um poeta escrevesse: “a morte reluz cristal nas pálpebras sonolentas”; eu então poderia acreditar que a manhã se afoga no rio de prata que vislumbro num sonho de infinito. Não sei se sou capaz de construir caminhos nas margens do silêncio, pergunto apenas: de que falamos quando falamos de amor?

Metamorfose Ambulante

Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Sobre o que é o amor, sobre que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor, lhe tenho horror, lhe faço amor, eu sou um ator

É chato chegar a um objetivo num instante
Eu quero viver nessa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Sobre o que é o amor... etc.
Vou desdizer aquilo tudo que eu lhes disse antes
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Raul Seixas

Epitáfio das palavras

Estou aqui e não estou aqui. Releio o que escrevi hoje e sinto-me morto. Quem é este que por mim fala? Que sério, e outro, é este que escarnece do haver vida? Parece que esqueci o sol, o calor na pele, os sentidos. Que memória é esta memória que recordo? E de que serve a memória impossível de lugares impossíveis? De que serve tudo que não seja vida, que não seja o pulsar, o latejar, constante das veias? Como me posso deixar assim prostrado, esquecido do sangue que circula dentro de mim?
Esqueço. Escrevo como quem transpira a podridão dessas batalhas que combati por engano. Se tudo perder pela incompreensão dos outros, então tudo ganharei. Estarei justificado. Que a minha honestidade, deste momento, de todos os momentos, seja essa justificação. Que o escrever, viver, assim expondo as feridas do meu corpo seja tudo o que tenho, que seja tudo que terei. Podem olhar para o lado, esquecer que existo, apagar-me dos ficheiros da memória. O que não posso é viver esquecido de que estou vivo. Ou deixar de lutar para que os sonhos invadam a realidade. É isso que sou. Que serei. Não posso deixar de pensar que posso ter tudo, que terei tudo, aquilo que quero. Não posso deixar que sonhos negros, palavras negras, me façam esquer da beleza de Eu estar vivo. Os outros, vocês os outros, eu, não podem nada contra esta força. Haja força. Caminharei o caminho que decidir percorrer. No fim há a morte. Que venha também a morte. O que me importa é que vivi, vivo, viverei.

terça-feira, abril 06, 2004

Divertimento

As palavras e posts seleccionados
Que desta acidental memória lusitana
Por lugares nunca antes desejados
Passaram para além da Trapobana,
Em desejos e mitos concretizados
Mais do que podia a dor humana
E entre sonhos alheios edificaram
Uma ilusão, que tanto sublimaram.

E também as memórias curiosas
Das dores que se foram adiando
O amor, o sexo, as terras maravilhosas
Que continentes de carne foram dilatando.
E aqueles que por lágrimas dolorosas
Se vão da lei da morte libertando
Esperando que os cante em toda a parte
Mesmo que para tal me falte o engenho e arte.

Conversa rápida e, certamente, descartável

De vez em quando lá tenho que aturar um amigo mais solícito que, preocupado comigo, me pergunta porque é que escrevo este blog . Eu, invariavelmente, fico calado, esperando que essa subtileza lhe entre pelo entendimento.

Inevitável habitáculo...


Edward Weston - Nude, 1936

…este que habitamos,
e que nos impede
o voo permanente.

segunda-feira, abril 05, 2004

Leituras (3):

Praia de Pedrógão, 23 de Agosto de 1981 – Os malefícios do tabaco. Não o mérito ou desmérito da peça de Tchekov, mas os do cigarro concreto que toda a gente fuma. O meu interlocutor era um técnico de saúde. E pôs-me diante dos olhos as estatísticas, por mim, de resto, conhecidas, Simplesmente, eu navegava noutras águas. Nas da angústia humana que, desde os primórdios – na China, na Índia, no Egipto, na América e na Oceania -, se socorreu de tóxicos que a acalmassem, pacificassem, fosse qual fosse o preço. Viver é que custa. Morrer não dói tanto. Ninguém hesita em tomar um comprimido se um dente o aflige. E há dores mais profundas e pertinazes do que essas que se aliviam com uma aspirina. Dores que necessitam de um lenitivo singular, que nos saiba bem enquanto actua e seja um companheiro solícito, um confidente discreto, um amigo fiel em todas as horas e circunstâncias. Um amigo que mesmo quando acaba por nos tiranizar e perder, nos liberta ainda de nós próprios nas asas da obsessão.
Miguel Torga - Diário

Epitáfio da Navegadora

A Gastón Figueira

Se te perguntarem quem era
essa que às areias e gelos
quis ensinar a primavera;

e que perdeu seus olhos pelos
mares sem deuses desta vida,
sabendo que, de assim perdê-los,

ficaria também perdida;
e que em algas e espumas presa
deixou sua alma agradecida;

essa que sofreu de beleza
e nunca desejou mais nada;
que nunca teve uma surpresa

em sua face iluminada,
dize: "Eu não pude conhecê-la,
sua história está mal contada,

mas seu nome, de barca e estrela,
foi: "SERENA DESESPERADA".
Cecília Meireles

Em surdina, para não te acordar...

Parabéns!

domingo, abril 04, 2004

Memória e desmemória

Relembro que a última vez que beijei os teus seios foi sem o conhecimento das despedidas futuras. A última vez que me afoguei nos teus olhos ignorava que me despedia desse tumultuoso mar. Na última vez que enlacei o teu corpo de encontro ao meu, soltei-te demasiado cedo porque imaginei um reencontro.
Talvez por isso vivam agarrados a mim: o teu cheiro; o teu sabor; a tua pele; Quero apagar-te desta memória imediata do ser, mas também te quero amar, agora. Quero-te e não te quero. Não suporto ter-te a mais de um centímetro da minha pele, mas também não suporto ter-te assim dentro de mim: cravada no meu respirar, permanência no meu sentir.
Como podes ter medo que te esqueça, se vives em mim para sempre. Mesmo que um dia estejas longe da memória imediata do que sou, permanecerás incrustada na minha pele, serás as cicatrizes das feridas felizes que causei em mim, ou tu causaste em mim. Importa que vivi (te vivi) isso faz-me feliz, quando não me agonia até ao ponto de me sentir sufocar.
Talvez não gostes de ouvir: que te amei para lá da loucura; que tudo isso me fez ter medo; que sim, te vi perfeita. Talvez não suportes ouvir: que eu ainda te amo; ainda te quero; ainda me quero afogar no teu corpo; viver para sempre dentro de ti.
Mas também quero lavar do meu corpo esse contacto, e esquecer por momentos que existes, para voltar a ser eu, sozinho, com sonhos onde a vida existe para além do teu corpo.

Inania Verba

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
— Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava;
A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?
Olavo Bilac

Desenho de K. Lixto

Uma música na margem do silêncio:

I know I stand in line until you think you have the time
To spend an evening with me
And if we go someplace to dance, I know that there's a chance
You won't be leaving with me
And afterwards we drop into a quiet little place and have a drink or two
And then I go and spoil it all by saying something stupid like "I love you"

I can see it in your eyes
That you despise the same old lies you heard the night before
And though it's just a line to you, for me it's true
And never seemed so right before

I practice every day to find some clever lines to say
To make the meaning come through
But then I think I'll wait until the evening gets late and I'm alone with you
The time is right, your perfume fills my head, the stars get red
And, oh, the night's so blue
And then I go and spoil it all by saying something stupid like "I love you"

The time is right, your perfume fills my head, the stars get red
And, oh, the night's so blue
And then I go and spoil it all by sayin' something stupid like "I love you"

I love you
I love you
I love you
I love you
C. Carson Parks

De que falamos quando falamos de amor?



Salvador Dalí
Galateia de Esferas, 1954
Galarina, 1944-45

Leituras (2):

Coimbra, 23 de Janeiro de 1989 – Morreu Salvador Dalí. Desaparece da cena do mundo um grande pintor e, sobretudo, um grande actor. Este é o que vai fazer maior falta, porque a obra responde pela imortalidade do outro. O histrião é que deixa vazio o palco onde só ele sabia representar o difícil papel de indivíduo singular no seio de uma sociedade arregimentada. Conformados com as regras de trânsito humano impostas pelos ficais da ordem, caminhamos tristemente arrebanhados, fiéis a um código de preconceitos, sem darmos conta sequer da nossa degradação. Havia, contudo, entre nós uma excepção à regra. Um cabotino catalão, com os seus bigodes insólitos, a sua bengala caducêutica, a sua lúcida loucura, que ao génio juntava a audácia subversiva. E ficávamos ao mesmo tempo escandalizados e fascinados com as irreverências e descomedimentos de que fazia gala. Reagíamos à superfície ao despautério, mas, no fundo do nosso inconsciente, sabíamos que era aquele anarquista provocador que nos vingava e redimia.
Miguel Torga - Diário


Salvador Dalí - Jovem Virgem Auto-sodomizada, 1954

...

Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem.
Sophia de Mello Breyner Andresen

Relembrado aqui [depois de me ter esquecido que o tinha publicado - num mês necessariamente distante]

Leituras:

Coimbra, 4 de Outubro de1988 – Quer um super-homem. E a vida só nos deixa ser o que já somos.

Coimbra, 21 de Janeiro de 1989 – Está sempre à espera de uma catástrofe. E a catástrofe há-de acabar por vir, assim persistentemente agoirada. O mal é como os cães, que quando a gente os teme mordem mesmo.

Chaves, 8 de Setembro de 1990 – Os gestos que não fazemos à espera que os outros os façam por nós. E assim perdemos a vida, que é uma expressão permanente que não pode ser adiada, nem diferida. Nenhuma prova de comunhão devemos esperar receber que não formos capazes de primeiro ousar.

Coimbra, 2 de Novembro de 1993 – É sempre o mesmo nó cego humano apertado por mil acanhamentos e pudores absurdos, e a mesma incapacidade humana de o desatar a tempo e a horas. Desde o início, há muitos anos já, que as nossas relações foram amigáveis mas esquivas, reticentes, distanciadas, embora a tratasse das mazelas frequentes e amparasse moralmente muitas vezes. Mas hoje, sem eu contar, inopinadamente, em voz velada, confessou-me que tem vivido nos últimos tempos obsessivamente acompanhada dos meus versos. E citou alguns, a começar por estes:

E o gesto cordial que se não fez,
Nem faz,
E fica por detrás
Da timidez.

Dispunha-me então a vencer também a inibição que me distanciava dela, e dizer-lhe que, sem nunca o dar a entender, a considerava intimamente uma das poucas fiéis depositárias futuras da minha memória de poeta. Mas entrou alguém, e a conversa mudou de rumo. E perdemos para sempre a feliz oportunidade de confiada e abertamente, encostar a alam um ao outro.
Miguel Torga - Diário

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Transfiguração

Tens agora outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda…
Assim te modelaram, caprichosas,
As sombras da lonjura,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina….


Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa…
Todas as deusas são mulheres ausentes…
Miguel Torga

sábado, abril 03, 2004

34. [Diário...]

- O que sentes agora?
- Ódio.
- E o que odeias?
- As horas, os minutos, o espaço físico… viver encarcerado neste corpo, nesta espécie de alma…odeia as palavras. Principalmente odeio esta palavra.
- Diz-me o que pensas enquanto dizes tudo isso?
- Penso num corpo… na sua sombra… numa ideia de paz e de euforia…penso em estar aqui, nesta exacta posição do globo…não sei quantos de latitude e não sei quantos de longitude….odeio-me, já te disse?
- Sim, e esperas que eu acredite?
- Espero que vejas o no meu corpo as cicatrizes dessas feridas, espero que procures até encontrares os meus medos…espero que esperes a minha morte, que me deixes naufragado no silêncio…espero que não fales… nunca, nunca mais.
- E porque desejas esse desejo?
- Porque todos os outros desejos me condenam a uma margem azul de infinito…a um copo transbordante de sumo de laranja…a noites de insónia em que fumo, fumo sem parar.
- Insónia?
- Sim, noites em que durmo afogado nesse esquecimento que é a memória do teu corpo, em que desespero procurando vestígios inexistentes…em que a esperança adormece comigo e acorda em outro lugar qualquer.
- E tu acordas onde?
- Acordo em mim. Levanto-me e percorro os dias em gestos desesperados, em actos falhados de esquecimento...imagino um futuro, e depois sinto-me a morrer.
- Como é isso de te sentires a morrer?
- Imagina que me afogo num turbilhão de sentidos…e me esqueço por momentos de tudo…mesmo tudo…e que no momento do êxtase recordo que estou morto. Percebes?
- Não.
- Imagina que imagino isto tudo e que só outra coisa diferente desejo….imagina que esse desejo é apenas o meu desejo…imagina que não existo…acredita, estou todo aqui.
- Nestas palavras que dizes?
- Não, precisamente nas palavras que rasgo no meu corpo…nas palavras que aguardam no silêncio dos dias…nas palavras que são o meu corpo.
- E de que são feitas essas palavras?
- Do medo, do antigo medo que me cerca, das cicatrizes que duram no meu corpo, de um futuro marcado em sangue naquilo que digo…e no que escondo.
- Podes explicar melhor?
- Posso, mas não quero. Explicar melhor seria espetar uma faca no meu coração e esperar que lambesses o sangue da minha morte….dizer-te: mata-me. Aqui, agora, já: Mata-me
- Esperas sinceramente que te mate?
- Espero que continues a pedir apenas o impossível…talvez ame isso em ti…talvez odeie. Talvez me odeie a mim.
- Isto são apenas palavras.
- Eu sei, que fingimento ocultam estas palavras, perguntas tu. E eu não respondo, não te respondo. Não agora, em que palavras são tudo o que tenho para te dar.

Se um poeta...

Se um poeta escrevesse: “a morte reluz cristal nas pálpebras sonolentas”; eu então poderia acreditar que a manhã se afoga no rio de prata que vislumbro num sonho de infinito. Se ele escrevesse também: “ a matéria pueril de que somo feitos/ é poeira nas asas dos seres alados”; eu então poderia acreditar que as cicatrizes que o meu corpo guarda se inscrevem no futuro e não no passado. Se além de tudo isso, ele escrevesse: “fala-me das turbulentas águas desse rio/ chama-me para que me afogue nele”; eu então poderia acreditar que as palavras são também outra coisa que não são. Mas como ele se esconde no seu silêncio, as palavras continuam apenas a ser aquilo que desejamos que sejam.

sexta-feira, abril 02, 2004

Cais deserto

Parte o barco rumando sem destino,
enquanto no cais apenas sombras se despedem
rostos adivinhados, fugidios e secretos,
de palavras penduradas em arame fino.
A dor reside na partida deste nunca,
à descoberta de um infinito desejo,
e encontrar, esse é o sem dúvida o ensejo,
de quem parte do nada para o nada.
Que a tua luz brilhe, e que eu procure,
ou que no desencontro permaneça o naufrágio,
por tudo isso pode esperar quem navega
nada esperando.

quinta-feira, abril 01, 2004

Sete canções de declínio [fragmento]

Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
- Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida.

Desfiles, danças — embora
Mal sejam uma ilusão...
— Cenários de mutação
Pela minha vida fora!

Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
— Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!

O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante —
O amante sem amante,
Ora amado ora traído ...

Lançar as barcas ao Mar —
De névoa, em rumo de incerto ...
— Pra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.
Mário de Sá-Carneiro

" "

"Na extrema curva do caminho extremo."

33. [Diário...]

Havia um homem morto no jardim ao pé do lago. Um homem morto, homem qualquer, homem nenhum. Morto, esse homem morto. Homem branco e azul. Encontraram-no esta manhã, ao pé do lago, estava morto esse homem morto. Todos lhe chamam “o homem morto” porque não se lembram do seu nome, e a chamarem alguma coisa àquele corpo, só pode ser “homem morto”. Porque vivo não está o homem que morreu ao pé do lago, está morto. Há muito que está morto, embora só hoje o tenham encontrado mesmo morto. Antes vagueava pelas ruas, morto já, mas caminhante. Este homem morto. Morreu portanto mais um homem morto e depois de limparem o jardim, aquele ali ao pé do lago, tudo continuará igual.

Na rádio:

O Homem do Leme

Sozinho na noite
Um barco ruma, para onde vai?
Uma luz no escuro
Brilha a direito, ofusca as demais

E mais que uma onda, mais que uma maré
Tentaram prendê-lo, impor-lhe uma fé
Mas vogando á vontade, rompendo a saudade
Vai quem já nada teme, vai o homem do leme

E uma vontade de rir
Nasce no fundo do ser
E uma vontade de ir
Correr o mundo e partir
A vida é sempre a perder

No fundo do mar
Jazem os outros, os que lá ficaram
Em dias cinzentos
Descanso eterno lá encontraram

Finalmente...

...num cinema perto de mim.

[Acontece a quem vive na província.]

[?]

- Como te sentes?
[pergunto eu a mim próprio]